O RS atravessa a maior tragédia social
da sua História, cujas causas foram agravadas pela desatenção das mesmas elites
que dominam Porto Alegre
Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Por Tarso Genro (*)
No discurso da vitória, logo após
a proclamação dos resultados eleitorais Jean-Luc Mélenchon, líder da França
Insubmissa e figura central da formação da Nova Frente Popular, disse (e
agradeceu!) que – pelas veias de 1/4 dos francesas – corria o sangue dos
imigrantes. E disse – defronte ao mar – em Marselha, que naquelas águas que
trouxeram este sangue estavam também os túmulos de milhares de crianças, cujos
pais vinham das antigas colônias, nos seus barcos precários, em busca de uma
vida digna.
O que espera da França, o mundo
democrático, a esquerda, o centro democrático e a centro-esquerda mundial? Não
sabemos, ainda, mas da direita fascista já sabemos, como dizem Piketty e Julia
Cagé (“The Guardian”, 3/jul.24), devemos esperar que “por não ter uma
plataforma econômica credível, a extrema-direita voltará à única coisa que
conhecemos – à exacerbação das tensões e a política do ódio”.
Um artigo de Dani Rodrik
(Jul/10.14, “Project Syndicate”) de outra parte, propõe o que devemos esperar
de uma força política de esquerda, historicamente ancorada nas classes
trabalhadoras, no atual momento de crise de perspectivas da ideia socialista em
todo o mundo: que a nossa fala deve se reportar ao novo mundo do trabalho, que
está sendo cooptado pelo conservadorismo empresarial – com a ilusão de que
todos podem ser empresários de si mesmos – e pelas facilidades aparentes do
fascismo como forma de exercer o poder pela violência desmedida.
Diz o autor falando mais além das
importantes questões climáticas e de gênero, sobre as quais a elite cultural
tem opiniões diferentes do público em geral: “focar diretamente em empregos
bons, seguros e produtivos para trabalhadores sem diploma universitário. O
aumento da insegurança econômica, a erosão da classe média e o desaparecimento
de bons empregos em regiões em declínio foram o coração do aumento do populismo
de direita (…), apenas revertendo esta tendência a esquerda pode apresentar uma
alternativa viável”.
As eleições do dia 7 de julho
apontaram uma vitória brilhante da Nova Frente Popular e criaram um novo
cenário de bloqueio contra o fascismo na Europa. Não é o renascimento da
esquerda tradicional da velha Frente Popular de 1936, assim como as facções de
direita e extrema direita, unificadas em torno da Madame Le Pen, não são as
mesmas do Século passado.
Pode se dizer que estas
representam a mesma barbárie que ensejou a ocupação nazista, mas hoje elas se
articulam com setores sociais e econômicos que se unificam em torno de outros
ideais. A desorganização da sociedade de classes tradicional trouxe à tona da
“grande política”, novos atores políticos representando outros sujeitos sociais
e também suscitou outros polos de disputa. Um deles, nestas eleições, teve uma
participação decisiva na vitória da Nova Frente Popular: os imigrantes
ancorados na periferia do sistema de poder do capital.
Os fascistas e a extrema direita
autoritária querem integrar uma Europa sem imigrantes – branca e
financeiramente elitizada – junto a vastos setores marginais das elites
“cosmopolitas”, que estão no limite do crime organizado (financeiros,
militaristas e armamentistas), que chamaram para si os deserdados do Estado
Social em crise e conquistaram os proletários desempregados (ou situados em
empregos secundários) e um sub- proletariado branco socialmente bloqueado, bem
como as classes médias baixas, ressentidas pela queda da qualidade dos seus
empregos.
O que unificou a oposição
antifascista, todavia, no segundo turno, além da luta por uma vida melhor –
como é natural em quaisquer processos eleitorais – foi a busca de uma coesão
novo tipo, de caráter humanista e democrático. Foi a defesa de uma nação não unificada
pela “raça”, mas a busca de um convívio social mais solidário, com base no
espírito da velha contratualidade social democrata, que apesar da sua crise
sobrevive na consciência de uma boa parte da população.
Uma França Insubmissa ao
fascismo, como se viu pelo resultado da união do centro com o conjunto das
esquerdas e horizontalmente unificada pela fraternidade antirracista,
culturalmente porosa no seu sentido mais nobre e vibrante – não pelos novos
ideais neoliberais da Europa unificada pelo capital – mas pelo velho imaginário
da sua Revolução que derrubou a Bastilha.
Chego ao objeto do meu artigo.
Penso que o Brasil é o país ideal para a experiencia da Nova Frente Popular
francesa e que o Rio Grande do Sul e Porto Alegre são pontos axiais desta referência
de mimese política, pelas suas virtudes e pelas suas tragédias. Tragédias: o
Brasil saiu de um Governo ensandecido pelo ódio, patrocinado pela maioria dos
meios de comunicação tradicionais, que lutaram para colocar na Cadeia o maior
líder popular do país, que venceria as eleições presidenciais do defensor da
tortura e do fascismo; e o Rio Grande atravessa a maior tragédia social e
climática da sua História, cujas causas são universais, mas que foram agravadas
pela desatenção destas mesmas elites, que ora dominam a cidade, fixadas apenas
nos seus “negócios” públicos e interesses privados.
Pensemos agora nas virtudes: o
Brasil reprimiu um golpe de Estado pela força das suas instituições de Estado e
através de uma posição de que se tornou hegemônica, em favor da democracia,
dentro das nossas Forças Armadas, o que nos dá uma estabilidade invejável,
talvez de longo curso, na América Latina; e Porto Alegre é uma cidade de
prestígio mundial na questão democrática e ambiental, que as últimas
administrações não conseguiram apagar na memória do Planeta, berço do Foro
Social Mundial e das grandes lutas ambientais que se desenvolveram no país, nos
últimos 50 anos.
Agora é necessário que o Governo
Federal tenha coragem de dizer que vai fazer e vai organizar um grande
movimento institucional e político para – a partir do Rio Grande em
reconstrução – interpor uma unidade política novo tipo, a partir do Estado,
para um processo épico de construção de um novo modelo socioambiental de
crescimento, desenvolvimento educacional, tecnológico e social para o Brasil.
As plataformas principais deste salto estão aí, vão do sul ao norte do país,
que tem como marcos referenciais: o Rio Grande reconstruído e construído, o
Pantanal do Mato Grosso e a gigantesca Amazônia -pulmão do mundo e coração do
Brasil.
(*) Tarso Genro foi governador do
Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça,
ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.
**Via Sul21