Porto Alegre vai voltar, mas, se quiser sobreviver, precisa
varrer nas eleições deste ano o Cavaleiro Único do apocalipse no seu perfil
populista
"After the Deluge" (Depois do Dilúvio), de George
Frederic Watts (Domínio Público)
Por Tarso Genro (*)
Ao contrário do que os formadores ideológicos da grande
imprensa rapidamente propagaram, defendendo que a situação de tragédia não é
propícia para o debate político sobre o futuro, defendo que é exatamente nos
momentos de crise que as pessoas, as classes, as instituições, mostram a sua
grandeza e a sua miséria. Sonegar as causas políticas da tragédia gaúcha é
sonegar o essencial e ajudar a esconder os crimes e as omissões deliberadas que
nos levaram até aqui.
Do ponto de vista do interesse público não cabe indicar quem
são os criminosos, o que é uma tarefa da Justiça Penal, mas sim apontar as
políticas públicas que permitiram que aqueles que cometeram crimes contra a
democracia e a cidade fiquem escondidos nos esgotos das Fake News e nas
manipulações cotidianas da desinformação deliberada. A devastação é grandiosa e
Celi Pinto tem razão quando diz que o Dilúvio tem razões políticas.
Rezam a lenda e a Bíblia Sagrada que “as águas do Dilúvio
destruíram os iníquos e todas as criatura que viviam na terra, exceto os que
estavam na arca. Quando as águas do Dilúvio baixaram, Noé e a sua família
saíram da Arca.” Os que saem da Arca, depois do Dilúvio – aqui e hoje – estão
vivos para cumprirem os desígnios de Deus, da História ou dos Profetas, mas
eles – os que estão vivos – amam, sofrem, lutam e um dia morrerão. Nós
morreremos, mas enquanto vivos, temos que falar.
Depois do Dilúvio também é uma pintura a óleo do inglês
George Watts, que “apresenta o sol de forma incompleta em 1886 e completa, em
1891”. A História se move em sequências incompletas, como no quadro do inglês –
marcado pela meticulosidade britânica: Noé abre a janela da arca e vê que a
chuva cessou. O que pensam, os gaúchos de hoje quando as chuvas cessam, sobre
as Profecias dos negacionistas que conduziram o pensamento de milhões, na
modernidade dissolvida pelas águas?
Tomada como símbolo, História ou Mito, a situação de Noé
(falecido com 950 anos e vivendo por mais 350 anos depois do Dilúvio no mundo
de um Deus improvável) não enfrentou as três negações que os humanos atuais
enfrentam. Depois do nosso Dilúvio, que causou danos e impressões muito mais
fortes do que a leitura das versões míticas da Bíblia, acho que devemos
repensar a Vida e a Política.
Na versão bíblica, um Deus vingativo teria dito
“multipliquem-se, povoem novamente a terra e exerçam domínio sobre ela”. E
depois: “quem derramar o sangue de um ser humano, pelo ser humano seu sangue
será derramado, pois ele foi criado à imagem de Deus.” O Deus da Gênesis 9, manda
derramar sangue e nega, portanto, o direito de perdoar a quem derrama o sangue
dos seus irmãos. Tendo o “verbo” como força letal, o Deus da Gênesis não
precisou encarar as Três Negações que enfrentamos nos dias de hoje.
A visão da Gênesis está largamente superada pelo direito
moderno, que é mais eficiente e mais “humano” que a “Lei do Talião”, que o Deus
vingativo recomendou a Noé e aos seus sucessores, pois a Lei dos Homens julga
os conflitos para retomar a coesão social, tanto pela aplicação da Lei Penal
como pela possibilidade do perdão. O Deus mítico, ideal, criado pelos homens ou
pela espontaneidade da energia do Universo é sempre maior do que a vida
imediata.
Mas Ele não se defrontou com as três negações que nos desafiam:
a negação da política, propagada pela mídia dominante, que gerou a deposição
inconstitucional da Presidenta Dilma e abriu as comportas ao fascismo e aos
novos políticos da extrema direita, negação principal e decisiva que ao
eliminar a política tradicional como um cancro e colocar, em seu lugar, o
fascismo e o negacionismo, mutilou o que tem de bom e humano na democracia
liberal.
A segunda negação é a Pandemia que – com a política
assassina da Cloroquina contra a vacina e da respiração ofegante como deboche –
ajudou a matar 8oo mil pessoas, cujos titulares ainda permanecem soltos e
impunes. O negacionismo climático é a terceira negação, que guindou ao topo do
imaginário do progresso a destruição ambiental e a criação de novas normas de
proteção, não dos humanos, mas dos desastres que aí estão.
Quero dizer, com a menção das Três Negações, que a dimensão
da barbárie universal se derramou sobre o Rio Grande, não como uma maldição
divina, que não só classifica crimes e estabelece as punições, mas que também
se estabeleceu de forma consciente – pelo dolo evidente de determinados
dirigentes políticos – pela extinção das políticas de manutenção das prevenções
e das defesas da cidade contra as cheias.
Porto Alegre, assim, passou a ser uma cidade-teste da gentrificação
perversa, da especulação imobiliária, palco dos “síndicos” populistas
neoliberais – sem propósito público – incensados pela mídia dominante. Porto
Alegre de modelo do Sistema Único de Saúde passou a ser o símbolo da
irresponsabilidade na Saúde Pública, pela ausência de uma estratégia sanitária
séria na época da Pandemia.
Porto Alegre de cidade que recebeu prêmios internacionais de
gestão decente, tornou-se um criadouro de meritocráticos de opereta – educada
pela extrema direita empresarial e pela sua mídia servil – que continuam
buscando a proliferação dos seus negócios e (como bons neoliberais
oportunistas) buscando as proteções do Estado. Porto Alegre vai voltar, mas –
se quiser sobreviver – vai varrer nas eleições deste ano o Cavaleiro Único do
apocalipse que nos afoga e concentra – no seu perfil populista – as Três
negações que Noé não precisou enfrentar, abrigado que esteve nas palavras do
Senhor.
(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do
Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e
ministro das Relações Institucionais do Brasil.
**Via Sul21