Foi na oposição aos
governos petistas que a tendência de usurpar o papel do Executivo foi
exacerbada de forma crescente e insaciável
Por Raul Pont (*)
A engenhosa forma de
tratar o Orçamento Público inventada no Congresso Nacional já caiu nas malhas
do Judiciário e das reportagens policiais do Fantástico, da Rede Globo.
Principalmente, nos descaminhos das “emendas secretas”, onde não aparecem
doadores nem beneficiários, mas acabam chegando em ONGs sem controle ou nas
casas de apostas das bets, nova febre fraudulenta da jogatina e do caça-níquel
nacionais.
A busca por influir e
orientar o gasto público pelo Parlamento não é de hoje, e sempre existiu, mas
de forma que não agredisse a Constituição e ocorresse nos limites de um regime
presidencialista onde o Poder Executivo (presidente, governador e prefeito) é,
explicitamente, o responsável pela elaboração e execução orçamentárias. Além de
votar o Orçamento, é legítima a pressão parlamentar e sua influência nas
reivindicações e prioridades no uso dos recursos públicos e a pressão sobre os
Executivos nas demandas e prioridades sociais e territoriais das comunidades.
Fora disso, é subverter o regime político ou torná-lo impraticável.
Nos anos 90, com o fim da
ditadura e a nova Constituição, cresceu a pressão do Parlamento para incidir
mais e diretamente sobre o Orçamento. O governo FHC, tratando a pão e água os
demais entes federados, acirrou essa tendência de pressão sobre o orçamento via
congressistas. Para o bem ou para o mal. Desde obras e serviços necessários até
o início dos contrabandos e da malversação com episódios como “os anões do
Orçamento”. Mesmo assim, as regras constitucionais eram, majoritariamente,
mantidas.
Foi na oposição aos
governos petistas que a tendência de usurpar o papel do Executivo foi
exacerbada de forma crescente e insaciável. Na guerra aberta contra o segundo
governo Dilma, sob a batuta de Eduardo Cunha (MDB) na presidência da Câmara, o
Congresso aprovou em 2015 (na ante sala do Golpe) a Emenda Constitucional nº 86
dando caráter impositivo à crescente fatia das emendas parlamentares ao
Orçamento Federal.
O governo golpista de
Temer (MDB) e a condição subordinada e refém do governo Bolsonaro (PSL) à
maioria conservadora, fisiológica e clientelista apenas ampliaram o controle do
Congresso sobre o Orçamento em flagrante contradição com o regime político
presidencialista. É claro que isso não decorre apenas do caráter individual do
parlamentar, mas também das outras distorções do sistema eleitoral e partidário
vigente. Uma inflação absurda de partidos que não se justificam por programas e
ideologias e a excrescência do voto nominal, individualizado, que torna
irresistível o clientelismo, a pulverização dos recursos e, como estamos vendo,
a crescente corrupção escancarada nas manchetes e nos inquéritos policiais.
Verdadeira farra corrupta com os recursos públicos.
No ano passado, em
seminário organizado pelo Instituto Novos Paradigmas, em Porto Alegre, o
ex-ministro do STF e ex-deputado constituinte (PMDB) de 88, advogado Nelson
Jobim, questionado sobre o tema dessa prática, agora estendida aos estados e
municípios, respondeu simplesmente: “O País é ingovernável”.
Em dezembro de 2024,
ainda no exercício do mandato, a ex-prefeita de Pelotas, Paula Mascarenhas
(PSDB), escreveu em artigo no jornal ZH (9.12.24) em que diz que, na busca de
recursos e projetos nos ministérios para ações comuns em seu município, recebeu
a recomendação de procurar deputados e senadores para apadrinhar as demandas
necessárias. Escreveu a prefeita, “jamais saí de lá com a alma e o coração tão
pesados”. E, mais adiante, “somos parlamentaristas no orçamento e nos
investimentos e presidencialistas na responsabilidade”.
A extensão dessa prática
aos estados e municípios, que no País pulveriza dezenas de bilhões de reais em
práticas clientelistas, liquida com os pressupostos da administração pública,
baseados na racionalidade e no planejamento dos gastos e investimentos. Diante
dessa realidade, no artigo citado, a ex-prefeita Paula Mascarenhas cogita, quem
sabe então, caminharmos para o regime parlamentar de vez. Assim, quem decide o
gasto terá a responsabilidade de justificá-lo, de prestar contas de seus
resultados.
Como fazer isso em um
sistema partidário e eleitoral com mais de 30 partidos e através do voto
nominal, essência do clientelismo e da tendência à corrupção?
Qualquer discussão séria
no Brasil sobre a troca do presidencialismo tem que ser precedida de uma
profunda reforma política que fortaleça os partidos e o voto partidário
programático, sem o qual não há possibilidade de governos efetivamente
democráticos e com credibilidade.
Diante desse quadro,
então, não há saída?
Claro que se pode
construir outro caminho. As citações de destacados dirigentes partidários
demonstram uma crescente consciência do desastre a ser evitado. A corajosa ação
do ministro Flávio Dino, no STF, barrando os casos mais escabrosos de emendas
secretas e sem controle, demonstra reações corretas e no bom caminho.
Cabe ao presidente Lula,
apesar do cerco e das ameaças diárias que sofre do “centrão” e da direita
parlamentar, assumir essa luta. Com certeza terá o apoio da maioria da
população e até de setores da mídia neoliberal, ferrenhos defensores dos “arcabouços”
e “teto de gastos”, mas que estão preocupados com os escândalos e a
ilegitimidade dessa invenção corrupta de emendas secretas e impositivas.
O STF tem que ser
suscitado sobre a incompatibilidade da EC nº 86 e o regime presidencialista que
está na Constituição.
Mas, mais do que isso,
esse debate tem que tomar as assembleias, as câmaras municipais, a universidade
e as entidades associativas. Essa decisão compete à soberania popular e não à
esperteza e ao interesse privado dos beneficiados.
Essa iniciativa de
mudança de pauta do debate nacional precisa ser assumida pelo governo Lula. O
presidente tem a autoridade de ter proposto na campanha substituir as “emendas
secretas” pelo “orçamento participativo”. Tem audiência e respaldo para isso. A
iniciativa, porém, não é só governamental. Os partidos que apoiam o governo, em
especial as federações do campo popular e socialista, precisam fazer disso uma
pauta de mobilização e participação social. Principalmente pelo exemplo
concreto das bancadas federais e estaduais desses partidos não se renderem à
lógica individual e transformarem esses recursos em debate público aberto,
direto com a população, para definir prioridades de obras e serviços para o
país, estados e municípios. Essa é a prioridade que o governo deve ouvir e
atender. Romper a lógica eleitoreira da clientela e fazer o debate público,
aberto pelo interesse comum. Essa outra lógica, outra direção, abrirá também o
questionamento e o cerco sofrido pelo ajuste fiscal. Retomar a mobilização,
mesmo pequena, no início, é o caminho para sair do impasse, do cerco, da
paralisia que torna toda população subordinada ao pensamento único neoliberal
ou às fake news e à pauta de costumes que a direita quer manter viva.
Não faltará vontade nem
participação, como ocorreu com as plenárias nas capitais sobre o Plano
Plurianual de 2024, e certamente teremos apoio também dos setores que buscam
fortalecimento da democracia e da soberania popular.
(*) Ex-prefeito de Porto
Alegre e ex-Deputado Estadual/PT-RS.
Foto: Guilherme Santos/Sul21 - Fonte: Sul21