quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Parceria Globo Lava Jato desconstruiu nossa democracia, demonizou a política e elegeu falsos heróis


Por Eliara Santana*

“A Operação Lava Jato apoiou a eleição de Jair Bolsonaro, tentou interferir no resultado eleitoral e agiu para perturbar o país”.

Quem faz essas afirmações incômodas não é esta que vos escreve, mas o ministro do STF, Gilmar Mendes.

As declarações foram dadas em entrevista à BBC News Brasil no dia 16/02.

Como agora todos estão podendo comprovar o que muitos de nós, jornalistas e pesquisadores de mídia e discurso vínhamos tentando mostrar há bastante tempo – ou seja, os desmandos e o autoritarismo da operação Lava Jato – quero retomar uma abordagem que fiz na minha pesquisa e sobre a qual venho falando bastante: a parceria entre a mídia (com foco no JN) e a Operação Lava Jato.

Essa ideia de “parceria” precisa ser sempre esmiuçada, detalhada, esclarecida para que os brasileiros possam compreender de verdade do que se trata (ou se tratou?) e qual o alcance disso para o Brasil.

O primeiro aspecto na compreensão desse conceito é: quando falamos em parceria entre mídia e Lava Jato, estamos falando da ação conjunta de duas instâncias de poder – mídia (imprensa corporativa) e judiciário (na figura da Lava Jato).

Duas instâncias poderosas sem controle externo, que se unem num trabalho conjunto para combater determinado ator ou determinado grupo, eleito como inimigo, a partir de um repertório construído.

Em linhas bem gerais, repertório é um tema que orienta a condução de uma narrativa. A corrupção foi assim estruturada.

O segundo aspecto é que, sem essa parceria, esse trabalho conjunto e afinado, a Operação lava Jato não tomaria a dimensão que tomou, e seus articuladores não seriam alçados à categoria de “heróis” no imaginário nacional.

O terceiro aspecto na compreensão do funcionamento dessa parceria é observar o modus operandi, ou seja, os elementos estruturantes desse arranjo.

Para muito além da divulgação de informações que deveriam ser sigilosas, posto que faziam parte de processos em andamento, essa parceria tinha um timing perfeito na divulgação de investigações, nas ações da Força Tarefa mostradas de modo espetacular na TV e nas delações direcionadas, e se esmerou também na construção de uma linguagem simbólica que estruturou todas essas ações conjuntas e garantiu o enaltecimento de determinadas figuras e a criminalização sem defesa de outras.

Feitas essas colocações, vamos tomar o que Gilmar Mendes aponta e mostrar como a parceria mídia (JN) – Lava Jato se efetivou na prática:

“A Operação Lava Jato tentou interferir no resultado eleitoral e apoiou a eleição de Jair Bolsonaro”

1º de outubro de 2018 – Divulgação de trechos de delação do ex-ministro Antônio Pallocci


Era a edição do JN às vésperas do primeiro turno da eleição presidencial, quando o então candidato do Partido dos Trabalhadores, Fernando Haddad, estava em segundo lugar na disputa com Jair Bolsonaro, do PSL, com uma tendência de crescimento, o que poderia ser positivo na de levar a disputa para um segundo turno.

Na edição do JN, a chamada:

“O ex-ministro Antonio Palocci diz em delação que o ex-presidente Lula sabia da corrupção na Petrobras e que o então presidente encomendou a construção de sondas para garantir, com recursos ilícitos, o futuro do do Partido dos Trabalhadores e a eleição de Dilma Rousseff. Palocci também disse que as campanhas de Dilma de 2010 e 2014 custaram quase três vezes o valor declarado. O PT afirma que o ministro Palocci mente”.

Na abertura da reportagem, a construção simbólica para acentuar a corrupção é marcada pela imagem de fundo para ilustrar – a clássica cena vermelha com um tubo de esgoto por onde escorre dinheiro.

A imagem é animada e vai se alterando à medida que William Bonner relata o acontecimento.

Quando ele menciona “recursos ilícitos para o Partido dos Trabalhadores”, há uma explosão de dinheiro, e uma enorme quantidade escorre pelo tubo de esgoto.

Em seguida, a reportagem mostra toda a movimentação em torno do ex-ministro petista.

Ao todo, mais de 9 minutos para expor a corrupção endereçada, a corrupção ligada a um grupo específico. Às vésperas do primeiro turno da eleição presidencial.

Voltando a 2021, vemos pelos trechos vazados das conversas dos procuradores que eles não estavam nem um pouco convencidos da importância da denúncia de Palocci. Mesmo assim, Moro decidiu tirar o sigilo e divulgar trechos a SEIS dias do primeiro turno da eleição presidencial.

3.out.2018

Jerusa Viecili, 10:51:55 - Dúvida: vamos fazer uso da delação do palocci? Isso foi discutido?

• Januário Paludo, 10:52:44 - O que palocci trouxe parece que está no Google.

• Jerusa, 10:52:59 – Fazer uso Significa Aceitar o acordo da PF […]

• Deltan Dallagnol, 11:01:38 – Explica melhor Je? Vc cogitaria não usar? Feito o acordo, creio que temos que tentar extrair o melhor dele e lutar para ele não receber benefícios diante da improbabilidade de que haja resultados úteis. Contudo, não me parece em uma primeira reflexão boa a estratégia de negar valor sem diligências. Essa foi a estratégia da PF na discussão pública sobre o acordo da Odebrecht [fechado em 2016 e criticado pela PF], que me pareceu indevida (ressalvadas as distinções óbvias com o acordo da Ode) […]

• Jerusa, 11:02:41 – perguntei pq foi comentado, antes, que nao usariamos. foi ao menos isso que me falaram com relacao aos termos de belo monte [hidrelétrica de Belo Monte, citada na delação]. ou seja, a ideia nao é minha.

• 11:03:15–sem falar que os relatos dele sao muito ruins […]

À época, em 2018, quando questionado pela liberação a apenas SEIS dias do primeiro turno de uma eleição que vinha já bastante polarizada, Moro disse:

“Não deve o juiz atuar como guardião de segredos sombrios de agentes políticos suspeitos de corrupção. Retardar a publicidade do depoimento para depois das eleições poderia ser considerado tão inapropriado como a sua divulgação”.

Um mês depois da liberação dos trechos da delação de Palocci, Sérgio Moro abandona a magistratura para se tornar ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, que havia ganhado a eleição.

Em outros trechos de conversas dos procuradores, o procurador Paulo Roberto Galvão comentou, a colegas em um grupo de mensagens do aplicativo Telegram divulgada pelo The Intercept em 2019: “Russo comentou que embora seja difícil provar ele é o único que quebrou a omertá petista”.

“Russo” é o apelido de Sergio Moro. Omertá é o código de honra de mafiosos italianos.

“A Operação Lava Jato agiu para perturbar o país”

4 de março de 2016 – o ex-juiz Sergio Moro autoriza a condução coercitiva do ex-presidente Lula para depor para a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba.

O ex-presidente não havia sido intimado a depor e, portanto, não havia negativa da parte dele – não havia, portanto, qualquer motivação legal para a condução coercitiva.

O assunto dominou a edição do JN naquela noite, e a manchete anunciava que “PF leva Lula para depor a investigadores da Lava Jato em SP”.

Ou seja, nada de dimensionar o significado de uma condução coercitiva em que o réu não havia oferecido resistência.

Foram várias reportagens, com destaque para a ação dos procuradores, muito espaço para o procurador Carlos Fernando dizer que havia muitos motivos “para investigar o senhor Luis Inácio”, e nenhum espaço para o contraponto da defesa.

Nas mensagens apreendidas pela Operação Spoofing e agora divulgadas, há falas sobre a condução coercitiva de Lula, e em uma delas a procuradora Carol afirma:

“Pessoal, fiquei pensando que precisamos definir melhor o escopo pra nós dos acordos que estão em negociação. Depois de ontem, precisamos atingir Lula na cabeça (prioridade número 1), pra nós da PGR”.

No mesmo dia, segundo diálogos agora tornados públicos, os procuradores da força-tarefa combinaram a divulgação de uma nota a favor do então juiz Sergio Moro, que foi questionado por determinar a condução coercitiva do petista.

Um dos procuradores afirma que a nota era necessária para “não deixarmos um amigo apanhar sozinho”.

A procuradora Carol completa: “Coitado de Moro.. Não tá sendo fácil. Vamos torcer pra esta semana as coisas se acalmarem e conseguirmos mais elementos contra o infeliz do Lula”.

Há vários outros trechos de conversas apreendidas na Operação Spoofing que corroboram fortemente as afirmações feitas por Gilmar Mendes e mostram que sem o espetáculo midiático a embasar as ações, elas não teriam obtido todo o sucesso que conquistaram.

Organizações Globo e Lava Jato

Os diálogos recentemente liberados deixam claro também que a parceria se estruturava muito bem com parceiros preferenciais, aqueles privilegiados que recebiam as informações das ações e até davam conselhos aos procuradores sobre como agir. E essa “forte união” foi sendo construída cuidadosamente, em várias etapas.

Em 18 de março de 2015, o então e ainda desconhecido juiz Sergio Moro recebeu o prêmio de “Personalidade do Ano” do jornal “O Globo”, por conta do trabalho na Operação Lava-Jato.

Com todas as honras, o então juiz de primeira instância da 13ª Vara de Curitiba recebeu o prêmio das mãos do vice-presidente do Grupo Globo, João Roberto Marinho, e do diretor de Redação de O Globo, Ascânio Seleme.

A Operação Lava Jato ganhava fôlego e exposição, e as grandes manifestações contra a recém-reeleita presidenta Dilma Rousseff ganhavam corpo na mesma medida.

Em 21 de junho de 2016, o jornalista global Vladimir Netto, que desde sempre fazia as reportagens sobre a Lava Jato, lançou um livro contando os “bastidores” da operação. O primeiro evento de lançamento foi em Curitiba.

Naquele momento, já estava muito forte o processo de impeachment contra Dilma Rousseff.

Segundo reportagem divulgada no jornal O Globo à época, o jornalista “descreve de forma eletrizante cada operação policial” e “não esconde sua admiração pelo juiz Sergio Moro e pelos procuradores e policiais federais que estão na linha de frente da investigação”.

Ainda segundo o jornal, Netto diz que Moro mostra “rigor e coragem” e que conduz o caso “com maestria”.

Resumindo: um jornalista, responsável por cobrir uma operação complexa e que mexeu com vários atores políticos, declara abertamente a admiração por um dos envolvidos – o juiz que julga o outro lado envolvido – e narra as operações policiais de forma “eletrizante”.

Será que toda essa empolgação não comprometeu o relato jornalístico? A notícia construída?

Curiosamente, Vladimir Netto parou de cobrir a Lava Jato quando a casa começou a ruir, a partir das denúncias do The Intercept e sobretudo com a Operação Spoofing. E ele não fez a reportagem anunciando o fim melancólico da operação, em fevereiro deste ano.

Em novos vazamentos divulgados pelo The Intercept, em fevereiro deste ano, há conversas frequentes do coordenador da Lava Jato, Deltan Dallagnol, com Vladimir Netto, que “aconselhou” o procurador a não emitir nota após a condução coercitiva de Lula, que foi autorizada por Sergio Moro em 4 de março de 2016.

Depois, o procurador Dallagnol acabou enviando ao jornalista a nota a ser divulgada para que ele a validasse.

Há ainda muito material a ser analisado e divulgado, mas esses trechos que já circulam dimensionam, muito, muito bem, o papel que essa parceria entre a mídia (sobretudo a Globo) e a Lava Jato teve na desconstrução da nossa democracia, na demonização da política e na construção de falsos heróis.

*Eliara Santana é jornalista e doutora em linguística pela PUC/MG - Via https://www.viomundo.com.br/

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