Em novembro do ano passado,
estado tinha 59 mil pessoas registradas como CACs, aumento de 69% em relação a
junho de 2020
Pesquisadora diz que flexibilização nas regras tem feito com que pessoas se finjam de atirador esportivo para se armar. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Por Luciano Velleda, no Sul21*
O aumento de pessoas com
registro de armas no Brasil traz um desafio para pesquisadores e formuladores
de políticas de segurança pública. Além do crescimento de parcela da população
armada, o perfil desse grupo é o que chama a atenção. O início da
flexibilização nas regras para compra de armas por parte de caçador, atirador
esportivo e colecionador (denominados pela sigla CAC) antecede o governo de
Jair Bolsonaro (PL), mas o afrouxamento da legislação teve grande impulso no
atual governo federal.
No Rio Grande do Sul, dados
obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) pelo Instituto Igarapé e disponibilizados
ao Sul21 mostram que quase dobrou o número de pessoas armadas registradas como
CAC em menos de dois anos. Em junho de 2020, o estado tinha 35.375 pessoas sob
tal denominação e, em novembro de 2021, já eram 59.818, um aumento de 69,1%. No
Brasil, no mesmo período, o crescimento foi de 106,2%. Sozinho, o RS representa
12,2% dos registros de CAC do País.
Na análise da advogada Isabel
Figueiredo, membra do conselho administrativo do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública (FBSP), as pessoas engajadas no movimento pró-arma perceberam ser mais
fácil “se travestir” de CAC e obter autorização via Exército, do que tentar o
direito a posse e porte de arma por meio da Polícia Federal. Segundo a
pesquisadora, o elevado crescimento de pessoas intituladas como caçador,
atirador esportivo e colecionador, mostra haver um desvio na lógica do grupo.
“Não é mais disso que se trata
e os calibres mostram que não são para uso esportivo”, explica Isabel. Enquanto
proliferam pelo País novos clubes de tiro, não há na mesma proporção um aumento
no número de praticantes reais do esporte. “Tem gente querendo se fingir de
atirador esportivo.”
Ao se analisar os dados apenas
dos atiradores esportivos no RS, o aumento é de 241,4% entre fevereiro de 2018
e dezembro de 2021. Ao todo, a quantidade de pessoas com registro de armas
nessa modalidade saltou de 17.440 para 59.539.
A pesquisadora enfatiza que a
situação é mais preocupante porque o Exército tem uma visão burocrática do tema
e não cumpre sua função de fiscalizar os CAC. Cerca de 2% dos colecionadores e
clubes de tiro recebem visita de fiscalização. Por outro lado, a advogada
lembra pesquisa recente do Datafolha apontando que 70% da população brasileira
é contra a posse e porte de armas.
“É interessante porque não é
que a população esteja se armando, até porque é caro comprar arma, mas são os
CACs que estão fazendo o estrago”, avalia. A situação, diz Isabel, preocupa.
Ela salienta haver estudos que mostram como as armas são um fator de risco,
influenciando no aumento da violência doméstica e em suicídios, além da
criminalidade. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indica
que cada 1% a mais de armas impacta em 2% de aumento de homicídios.
Radicalização
A mudança no discurso pró-arma
de Bolsonaro não escapa da análise de Isabel Figueiredo, também ex-secretária
de Segurança Pública do Distrito Federal. Enquanto deputado federal e durante
toda a campanha eleitoral de 2018, Bolsonaro sempre moldou o discurso a favor
do armamento da população como forma do cidadão se proteger da criminalidade. A
retórica começou a ser modificada na famosa reunião ministerial de abril de
2020, que veio à tona na esteira da acusação do então ministro da Justiça,
Sérgio Moro, de que o presidente teria tentado interferir na Polícia Federal.
Naquela reunião, no contexto
dos primeiros meses da pandemia do novo coronavírus, Bolsonaro argumentou que a
população armada poderia ser uma forma de combater a “tirania” de prefeitos e
governadores que impunham medidas de restrição para combater a disseminação do
vírus.
Desde então, a integrante do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) acredita ser para esse público
mais radicalizado que Bolsonaro dirige seu discurso pró-arma – além de agradar
a indústria armamentista.
“Essas pessoas estão se fortalecendo
como grupo, como identidade. É um risco e temos que estar atentos. E não me
parece que o Exército esteja olhando pra isso, esteja dando a devida atenção
pra esse tema”, afirma Isabel. “Esse grupo nunca esteve tão forte e empoderado
como agora.”
Por outro lado, ela ressalva a
existência dos verdadeiros atiradores esportivos, assim como colecionadores que
cumprem um papel histórico importante.
Futuro
Se fingindo ou não ser um
caçador, atirador esportivo ou colecionador (CAC), fato é que o aumento de
69,1% de pessoas armadas no Rio Grande do Sul sob essa denominação, e 106,2% no
Brasil, é algo consolidado e não retrocede. Ciente desse cenário, Isabel
Figueiredo propõe olhar para frente. Em caso de mudança na presidência da
República a partir de janeiro de 2023, as portarias e decretos emitidos por
Bolsonaro para facilitar o acesso às armas podem ser facilmente revogáveis. Por
meio de lei houve pouca coisa, basicamente o porte em zona rural.
Na perspectiva otimista, o
Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) tem proposto a criação de uma
agência de controle sobre armas, como forma de organizar e qualificar a
fiscalização no Brasil.
“Essa talvez seja uma medida
muito importante. Se não volta atrás com quem já comprou, ao menos melhora o
controle”, pondera Isabel. No entanto, se o atual presidente se reeleger, a
advogada teme pelo futuro. “Aí vai ser o caos.”
*Fonte: https://sul21.com.br/