Por Hemerson Ferreira*
Um
breve resumo de como os Farroupilhas sulistas recrutaram e depois descartaram
seus soldados negros
Durante
a chamada Guerra dos Farrapos no Rio Grande do Sul (1835-45), quando um homem
livre era chamado a servir tanto nas forças rebeldes quanto nas imperiais,
podia enviar em seu lugar (ou no lugar de um filho seu) um de seus
trabalhadores escravizados. Em alguns casos, o alforriavam e alistavam. Também
foi prática comum buscar atrair ou tomar cativos das tropas inimigas,
trazendo-os para seu lado. O primeiro exército a utilizar negros escravizados
como soldados foram os imperiais. Precisando também formar uma infantaria e
sobretudo preferindo enviá-los como bucha-de-canhão, morrendo na frente em seu
lugar, farrapos também os alistaram: eram os famosos Lanceiros Negros. Ambos,
farrapos ou imperiais, prometiam também liberdade aqueles que desertassem das
tropas rivais, mudando de lado.
A
maioria dos cativos que combateu nesta guerra foi obrigada a fazê-lo diante das
condições impostas. Por outro lado, apesar da guerra ser horrível e violenta,
era até preferível a vida militar, com seus esporádicos combates, do que as
agruras diárias da escravidão. A promessa de liberdade após o fim da luta
certamente pode ter influenciado em muito o recrutamento daqueles homens. Uma
promessa, aliás e como veremos, jamais cumprida.
Não
havia igualdade nas tropas farroupilhas, muito menos democracia racial. Negros
e brancos marchavam, comiam, dormiam, lutavam e morriam separadamente. Os
oficiais dos combatentes negros eram brancos, e jamais um negro chegou a um
posto significante, mesmo que intermediário, de comando. Aos Lanceiros Negros
era vedado o uso de espadas e armas de fogo de grande porte. Não lutavam a
cavalo, como costumam mostrar nos filmes e mini-séries de TV, mas sim a pé,
pois havia o risco de se rebelar ou fugir. Sua arma principal era a grande
lança de madeira que lhes deu nome e fama, algumas facas, facões, pequenas
garruchas, os pés descalços, a bravura e o anseio pela liberdade prometida.
Seria
anacronismo se quiséssemos que líderes farroupilhas tivessem um comportamento
ou posições políticas avançadas e assim diferentes das existentes em seu tempo,
mas defesa da Abolição da escravidão era bem conhecida e nada alienígena na
época. Uma Abolição começou a ser decretada em Portugal em 1767, proibindo que
fossem enviados para o reino mais cativos vindos da África, e em 1773 foi
decretada uma Lei do Ventre Livre naquele país. Na Dinamarca, isso se deu em
1792. Na França, em 1794 (ainda que Napoleão tenha tentado restabelecer a
escravidão no Haiti em 1802). No México, uma primeira tentativa de Abolição foi
feita em 1810, mas foi finalmente vitoriosa em 1829. Bolívar libertou cativos
em 1816-7, durante suas lutas por independência, e finalmente aboliu a
escravatura em 1821. A Inglaterra, que havia findado a escravidão pouco antes
da Revolta dos Farrapos, pressionava o Brasil pelo fim do tráfico negreiro
desde 1808. Willian Wilbeforce, um dos maiores abolicionistas da história,
morreu em 1833, ou seja, dois anos antes da guerra no Sul do Brasil. Farrapos,
portanto, conheciam, sim, e muito bem o abolicionismo.
Entretanto, os
principais chefes farrapos, Bento Gonçalves, Canabarro, Gomes Jardim e até
Netto, dentre outros, eram todos ferrenhos escravistas. Quando aprisionado e
enviado para a Corte no Rio de Janeiro, Bento Gonçalves teve o direito de levar
consigo um de seus cativos para lhe servir. Ao morrer, o mais conhecido líder
farroupilha deixou terras, gado e quase cinqüenta trabalhadores escravizados de
herança aos seus familiares. Bem diferente do que fizera Artigas no Uruguai
anos antes, os farrapos jamais propuseram uma reforma agrária ou mesmo uma
distribuição de terras entre seus soldados, mesmo os brancos pobres, que dirá
os negros. A defesa da escravidão era tão clara entre os chefes farrapos a
ponto deles jamais sequer terem mencionado o fim do tráfico negreiro.
Ao
fim da guerra e já quase totalmente derrotados, os farrapos incluíram entre
suas exigências para o Império o cumprimento da promessa de liberdade que
haviam feitos aos Lanceiros (principalmente porque temiam que eles formassem
uma guerrilha negra na província já que a quebra da promessa os faria se
rebelar ou fugir para o Uruguai, destino comum de diversos cativos fugitivos na
época). Queriam entregar-se ao Império, acabar a guerra, voltar à normalidade,
mas tinham os Lanceiros e a promessa que lhes haviam feito, e o Império,
escravista até a medula, não queria cumprir essa parte do acordo.
Que
fazer então? A questão foi resolvida na madrugada de 14 de novembro de 1844,
quando o general farrapo David Canabarro entregou seus Lanceiros desarmados ao
inimigo, tudo previamente combinado com Caxias. E no serro de Porongos, hoje
região de Pinheiro Machado (interior do Rio Grande do Sul), foi dizimada quase
toda a infantaria negra, enterrando de vez a preocupação dos farrapos e
acelerando assim a paz com o Império. A instrução de Caxias a um de seus
comandados foi clara e objetiva: a batalha teria que ser conduzida de forma tal
que poupar apenas e dentro do possível o sangue de brasileiros (e o negro era
então tratado como africano, mesmo que já nascido no Brasil).
Alguns
historiadores apologistas ou folcloristas de CTGs consideraram aquela traição
como Surpresa, já que pela primeira vez que o então vigilante Davi Canabarro
teria sido surpreendido pelo inimigo. Conversa fiada! Enquanto dispôs suas
tropas negras de tal maneira que ficassem desarmadas e descobertas, algo que
até então nunca havia feito, Canabarro se encontrava bem longe e seguro do
local, nos braços de Papagaia, alcunha de uma amante sua.
Após
o combate, um relato oficial avisou a Caxias que pelo menos 80% dos corpos
caídos no campo de Porongos eram de homens negros. Calcula-se que, nos últimos
anos daquele conflito, os farrapos ao todo somavam uns cinco mil homens, sendo
que algo em torno de mil eram Lanceiros Negros. Após o Massacre de Porongos,
porém, restaram apenas uns 120 deles, feridos, alguns mutilados, e que foram
primeiramente enviados para uma prisão no centro do país e depois dispersados
para outras províncias, ainda mantidos como cativos.
Feito
isso, deu-se a chamada rendição e paz do Poncho Verde, onde senhores
escravistas dos dois lados trocaram abraços e promessas de lealdade e, logo
depois, marcharam juntos e sob a mesma bandeira imperial contra o Uruguai, Argentina
e Paraguai.
*Hemerson Ferreira é Professor
de História - hemersonfer@bol.com.br
-Via Blog Desobediência Vegana "Que
todo folclore serve para idolatrar chefetes, ricos e poderosos, já afirmou Ezio
Flavio Bazzo em seus livros. Reparem como todo tradicionalismo, folclore,
sempre tem a ver com religião, endeusamento de reis, deuses inatingíveis e
cruéis, puro puxa-saquismo barato, travestido em vestimentas cada vez mais
ornamentadas e caras. CTG, meu amigo, é para quem pode." (Blog D. V.).
- Acima, capa do livro do historiador Tau Golin. (Nota deste Editor).