Por Frei Sérgio Görgen*
Melhor ser acusado de comunista do que ser, de fato, alienado, omisso,
em má consciência com a fé que professo.
Nos idos dos anos 80 do século passado fui muitas vezes achacado com
esta consigna “padre comunista”.
Mais recentemente fui batizado de “frei melancia”. Diz que é
“ecologista”, mas é mesmo “comunista”: verde por fora, vermelho por
dentro.
Nos mesmos idos de 80 recebi duas cartas ameaçadoras do CCC – Comando de Caça aos Comunistas. Ameaçavam me esfolar e até eliminar caso não me convertesse ao que achavam ser o “verdadeiro” cristianismo. Nunca me tiraram um único minuto de sono.
Não pensei que este besteirol um dia voltasse. Pois não é que voltou!
Qualquer frase solta que fale em libertação, defesa de direitos, anti-fascismo,
sociedade solidária, já vem a pecha: padre comunista.
Embora vivendo a vocação de simples frade, consagrado e não ordenado,
pelo fato de estar há muitos anos com “sem terra”, camponeses, pequenos
agricultores, indígenas, quilombolas, pescadores, defendendo suas causas e
lutando por distribuição de terras e rendas, estou no rol dos ditos cujos e,
inclusive, me promovem a “padre”.
Nem hoje me tiram o sono. Sei a fé que abracei.
Mas me imaginei num tribunal inquisidor formado por católicos
tradicionais, rançosos e raivosos, enfeitiçados pelo bolsonarismo, convencidos
até à medula da autenticidade pura e única de sua religião medieval pintada de
nova com o uso das modernas redes sociais.
Para evitar ser crucificado com esta acusação no tribunal das novas
mídias pensei numa fortificada linha de defesa: vou me ancorar na Bíblia.
Aí comecei a perceber que minha defesa tem vários furos e fiquei com
medo de ser, mesmo com tão poderosa defesa, condenado.
Então resolvi tomar uma providencial providência: vou rasgar da Bíblia
os textos que podem me condenar.
Comecei rasgando os 4 primeiros capítulos dos Atos dos Apóstolos.
Aquelas partes que dizem que “os cristãos tinham tudo em comum e não havia
necessitados entre eles” e “vendiam os seus bens e colocavam o valor aos pés
dos apóstolos” para repartir com os necessitados, poderiam me condenar. E ainda
o apóstolo Pedro dizendo que “Deus não faz distinção de pessoas” ... Nossa!
Comunismo puro.
Depois arranquei a Carta de Tiago inteira. Aquela mania de São Tiago em
dizer que “a fé sem obras é morta” e que “ricos, vossa riqueza apodreceu” e “os
gritos dos ceifadores de quem vocês tiraram o salário chegaram aos ouvidos de
Deus”. Preocupante. Inútil para minha defesa.
Depois comecei a dar uma repassada nos Evangelhos. Fiquei
preocupadíssimo com o Cântico de Maria, no Evangelho de Lucas. Nossa Senhora
rezando que Deus “vai derrubar os poderosos de seus tronos e exaltar os
humildes, saciar os famintos e despedir os ricos de mãos vazias”. PelamordeDeus.
Rasguei na hora. Além de me condenar, poderia atrapalhar muitos inescrupulosos
que usam as devoções marianas do povo simples para ajuntar dinheiro e falar mal
do Papa Francisco e da Igreja comprometida com os pobres, em nome de Nossa
Senhora.
Rasguei também a parábola do rico comilão e do pobre Lázaro. Rasguei e
queimei, para não deixar vestígios, a passagem dos trabalhadores desempregados
na praça que receberam o mesmo valor dos contratados mais cedo, pois podem
interpretar “de cada um conforme sua capacidade e a cada um conforme sua
necessidade”; também aquelas em que Jesus distribui pães e peixes às multidões
famintas; eliminei todas onde Ele convida doentes, coxos, mendigos, pobres,
abandonados para o banquete do Reino para o qual os “bem de vida”, convidados,
recusaram; destruí várias em que Jesus diz “vai, vende o que tens, dá aos
pobres e depois vem e segue-me”; aquelas do camelo passando pelo buraco da
agulha antes de ricaços aceitarem o Reino de Deus... Credo. Comunismo puro na
mente desta gente cega de ódio.
Arranquei também o Pai Nosso. Vai que atentem que o Mestre ensinou a
orar pela vinda do Reino e pelo cumprimento de Sua vontade “assim na terra como
no céu”. Esta coisa do Reino na terra, aqui neste mundo, não, não, não. “O meu
Reino não é deste mundo”. Esta é a interpretação correta. Reino também neste
mundo, é Teologia da Libertação. E TdL é comunismo. E depois aquela parte de
pedir “o pão nosso de cada dia”, nem pensar. Comida para todos é coisa de
comunista. Para evitar problemas, rasguei.
A expulsão dos vendilhões do templo, eliminei nos quatro Evangelhos.
Credo. Uma da poucas vezes que o Mestre enraiveceu foi quando viu comércio com
a fé do povo. Risco grande de Ele também ser classificado como comunista. Proibir
arrancar dinheiro do povo em troca de bençãos, curas, preces e graças,
comunismo puro.
Aquela parábola do Samaritano fazendo o que sacerdotes e pastores deviam
fazer e não fizeram, acolhendo e cuidando do pobre jogado à beira da estrada,
fiquei mesmo em dúvida. Porque caridade assistencial, pode. O que não pode é
perguntar: quem o assaltou? quem o roubou? Talvez por isto os servos do templo
preferiram passar ao largo. Aproximar-se dos pobres pode levar a compromissos
mais profundos. Droga. Já estou com argumentação comunista para a mente poluída
dos que me acusam. Sem riscos. O Evangelho de Lucas não terá mais esta parábola
quando o apresentar em minha defesa.
Rasguei também as Bem Aventuranças e as mal aventuranças de Lucas. “Bem
aventurados vós os pobres”, “Malditos vocês ricos”, doideira, luta de classes,
marxismo, vade retro, satanás. “Bem aventurados os que tem fome e
sede de justiça”, de Mateus, excluí também. Olhei melhor e excluí também,
em Mateus, a bem aventurança da paz, pois agora são tempos de armas e cruzadas
contra os inimigos e hereges. Falar de paz contraria o novo “messias” da
metralhadora no lugar do feijão.
Bah. E aquele texto em que Jesus afirma “vós TODOS” sois irmãos”. Vai
que neste TODOS imaginem que estejam “sem terra”, negros, índios, LGBTQI+, “sem
teto”, migrantes, moradores de rua, “todos estes que não prestam”... Meus
IRMÃOS, estes? Nem a peso de ouro. Comunismo. Página rasgada.
E aquela cena de lavar os pés dos discípulos e dizer: “os grandes da
terra dominam com tirania, entre vocês não seja assim”. Quebra de hierarquia
social. Sem dúvida, comunismo. Decidi não correr risco e página no fogo.
Tomei algumas precauções a mais: eliminei a passagem de João em que uma
mulher surpreendida em adultério ia ser apedrejada e Jesus não deixou. Vão
pensar que defendo pessoas de “má vida”. Além do mais, poderia perguntar: por
que o homem adúltero estava livre das pedradas? Esta mania de fazer perguntas
que levem a pensar é coisa de Paulo Freire, um comunista-mor.
Eliminei também aquela em que Marta pediu que Maria voltasse para a
cozinha e Jesus garantiu o direito de as mulheres participarem do mesmo círculo
que os homens em pé de igualdade. As mulheres podem querer exigir demais
baseadas nisto. Risco eliminado. Feminismo é fruto do comunismo, e ponto final.
Aí passei a me preocupar com o Antigo Testamento. Rasguei o
profeta Isaias inteiro. Muito perigoso. Depois Amós. Eliminei Oseias. Retirei
Miqueias. Muito contra a exploração e a favor dos injustiçados. E ainda Esdras
e Neemias assembleistas e distributivistas demais. Não me ajudarão na
defesa.
Minha Bíblia estava ficando pequena, mas, paciência, eu precisava salvar
meu couro da sanha anticomunista.
Aí passei a me preocupar com o Êxodo. Organizar escravos, enfrentar
governantes tiranos, acampar em deserto e conquistar terra prometida, e Deus
apoiando, credoemcruz, isto é MST na veia, comunismo da gema.
Eliminei o livro inteiro.
Mas aí lembrei também de Levítico e Deuteronômio. Aquelas leis para
garantir justiça, estabelecer ano sabático para devolver terras, e ainda dizer
“que entre vós não existam pobres”... Perigoso demais. Dois livros a menos.
Aí cansei. A Bíblia já estava miudinha. Preservei os textos de Salomão
cobrando impostos pesados ao povo, vivendo no luxo, com 700 esposas oficiais e
mais 300 concubinas. Este sim, garanto que não tem nada de comunista. Façamos
templos e altares a Salomão.
Até pensei em argumentar que os primeiros defensores modernos de uma
sociedade de iguais, embora utópica, foram dois pensadores cristãos: Morus e
Campanela.
Também pensei em fazer distinção entre socialismo e comunismo, para que,
pelo menos, se saiba do que se está falando quando se multiplicam falas
superficiais por aí afora sobre o tema. E que o socialismo, como movimento
histórico, despido de ateísmo e totalitarismo, recebeu abertura para
engajamento cristão na encíclica Octogésima Adveniens do Papa
São Paulo VI.
Mas acho que diante de tanta pequenez intelectual e tanto fanatismo
cego, de pouco adiantará.
Talvez nem minha diminuta Bíblia rasgada e purificada me sirva de
defesa.
Mesmo assim continuarei frade engajado nas lutas sociais em defesa dos
desprotegidos, excluídos e explorados, anti-capitalista, socialista e seguidor
de Jesus de Nazaré, o Cristo Crucificado e Ressuscitado.
Melhor ser acusado de comunista do que ser, de fato, alienado, omisso,
em má consciência com a fé que professo.
Me chamem do que quiserem e me ataquem como quiserem.
Mas, por preferência, gostei mais de ser chamado de “frei melancia”:
aquele suco vermelho é muito doce.
*Frei Sérgio Görgen (foto acima) é dirigente do MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores) e Via Campesina - Fonte: Brasil247 - Foto: site do PT Nacional
**Edição final deste Blog
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