"Em
vez de servir para punir exemplarmente culpados, o "mensalão", com
seu domínio do fato, transformou a Justiça em parte do terceiro turno eleitoral"
Por Maria Inês Nassif*
Na briga política com “P” maiúsculo, quando se traça estratégias de disputa com
grupos oponentes, define-se um limite além do qual não se deve ultrapassar, por
razões éticas ou para não abrir precedentes que, no futuro, possam se voltar
contra o próprio grupo que não observou esse limite. Em ambos casos, a
preservação dos instrumentos de luta democrática é a preocupação central.
O Supremo Tribunal Federal (STF), a partir do caso chamado
Mensalão, arvorou-se em fazer política
com "p" minúsculo, sem pensar nos precedentes que abria nos momentos
em que jogava para a plateia, escolhia inimigos e relativizava a Constituição.
Ao fazer jogo político sem que fosse qualificado para isso, pois não é um poder
que decorre da livre escolha popular, não mediu as consequências e deixou uma
lista de precedentes com potencial de corroer a democracia brasileira.
O primeiro mal exemplo que deu foi o de que um poder não
deve obedecer limites. Ao longo do período pós-ditadura, a Corte maior do país
se dedicou a uma crescente militância. A nova composição do Supremo,
pós-Mensalão, é muito mais jurista do que política, mas é ela que vai ter que
pagar pelo erro dos seus antecessores.
No julgamento do Mensalão, em vez de manter-se acima de um
clima de comoção artificialmente criado por partidos de oposição e uma mídia
avassaladoramente monopolista, o STF fez parte da banda de música. O que se
tocava era um mantra segundo a qual
qualquer que fossem as provas, quem deveria pagar com a cadeia era a banda
governista envolvida no escândalo. Se as provas não corroborassem, que se
danassem as provas. Era uma onda de pânico tão típica de momentos
aterrorizantes da história mundial – como a ascensão do nazismo e do fascismo,
com a repetição de “verdades” construídas sobre afirmações mentirosas, mas
fáceis de atrair ódio sobre grupos políticos adversários – que a inclusão da
Corte Suprema do país nesse tipo de armação foi de tirar noites de sono de quem
já viveu o pesadelo de ditaduras.
O STF abraçou entusiasticamente a tese do domínio do fato
para justificar a condenação, por exemplo, de Henrique Pizzolatto (acusado de
desviar um dinheiro da Visanet, empresa privada de cartões de débito, que
comprovadamente foi destinado para veiculação de anúncios nos próprios veículos
de comunicação que o acusavam de corrupção), ou de José Genoíno (que foi
condenado porque assinou um empréstimo bancário que comprovadamente entrou na
conta bancária do PT e foi quitado pelo partido), ou de José Dirceu (que se
supôs ser o mentor do esquema sem que nenhuma prova disso fosse apresentada
à Justiça). Com isso, a Corte deu
satisfações a uma parcela da população que advogava a prisão a qualquer custo,
mas por este prazer de momento legou ao país a dura herança da condenação sem
provas e do espetáculo midiático em vez do julgamento justo. O STF alimentou o
senso comum de que lugar de adversário político é na cadeia. A democracia
brasileira vai levar anos, décadas, uma era, para se livrar desse legado.
O juiz Sérgio Moro forçou a mão nas suas decisões de
indiciamento das pessoas mais ligadas ao PT e ao governo, no curso da Operação
Lava Jato, e provavelmente condenará a todos eles, com provas ou, se não
consegui-las, por suposição. Mas não se pode acusá-lo de ter inventado a roda.
A insegurança jurídica provocada pela teoria do domínio do fato – que aproxima
a Justiça da democracia brasileira dos famigerados Inquéritos Policiais
Militares (IPMs) da ditadura, responsáveis pela “investigação” e “julgamento”
de adversários políticos por suposições de corrupção – é obra do ex-ministro
Joaquim Barbosa, corroborada pela maioria do plenário do STF, no bojo de uma
histeria coletiva artificial provocada por uma pressão direta da oposição e dos
meios de comunicação, on line, na medida em que o julgamento se desenrolava nas
telas das TVs. Barbosa continuará produzindo condenações altamente
questionáveis mesmo depois de ter ido embora para casa tuitar palpites sobre
uma democracia que ele não cuidou quando era ministro do Supremo.
Daí que o precedente Joaquim Barbosa gerou Sérgio Moro, que
forçou a mão nas peças jurídicas que levaram ao indiciamento de uns, e deixaram
passar culpas de seus oponentes.
O precedente Joaquim Barbosa condenou Pizzolatto por
contratos do Banco do Brasil com a Visanet que são anteriores à sua posse na
diretoria da Marketing da estatal. O tesoureiro do PT, João Vaccari, foi
indiciado por financiamentos legais de campanha feitos ao seu partido pelas
empresas implicadas no escândalo Petrobras desde 2008 – sem que Moro tenha se
importado com o detalhe de que Vaccari assumiu a tesouraria da legenda a partir
de fevereiro de 2010. Se a intenção fosse a de fazer justiça, o juiz teria no
mínimo feito referência ao tesoureiro anterior. Usou, todavia, o domínio do
fato, para argumentar uma responsabilidade telepática de Vaccari sobre fatos
que aconteceram mesmo antes de ele assumir o cargo.
O juiz argumenta, ao aceitar a denúncia, que João Vaccari
“tinha conhecimento do esquema criminoso [de pagamento de propinas por empresa
fornecedoras da Petrobras] e dele participava”, fiando-se em delações premiadas
de participantes do esquema que tinham interesse pessoal em responder aos
anseios das autoridades policiais e judiciárias que jogavam para uma plateia –
e que fizeram isso de forma mais intensa no período eleitoral, com fartos
vazamentos seletivos sobre um inquérito que envolveu Deus e o diabo na terra do
sol.
Moro tomou como fato inquestionável – e confundiu isso com
prova – que o esquema envolveu exclusivamente os últimos governos, e que o
financiamento dado oficialmente ao PT era, na verdade, produto de propina. E
traçou uma lógica segundo a qual a cada fechamento de contrato pelas empresas
envolvidas resultava numa doação legal para o PT, ou para uma campanha do PT.
Quando se toma a doação dessas mesmas empresas para o PSDB e
para o PMDB, todavia, fica um grande vazio. Existem duas ordens de doações
privadas para partidos e candidatos, segundo Moro: uma, recebida por
determinados partidos, que são propina; outra, captada por outros partidos, que
não são crimes.
Se tomados os dados de doação registrados junto ao Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), as 16 empresas envolvidas no Caso Lava Jato (Galvão
Engenharia, Oderbrecht, UTC, Camargo Correa, OAS, Andrade e Gutierrez, Mendes
Júnior, Iesa, Queiroz Galvão, Engevix, Setal, GDK, Techint, Promon, MPE e
Sranska) contribuíram com R$ 135,5 milhões para as eleições de 2010 e R$ 222,5
para as eleições de 2014.
Nas eleições de 2010, o PMDB, que não tinha candidato
presidencial, recebeu a maior parcela, de R$ 32,85 milhões; o PT, R$ 31,4
milhões e o PSDB, R$ 27 milhões. Foram os três maiores agraciados, com 24%, 23%
e 20% das doações totais dessas empresas, respectivamente. Todavia, o PSB, o
PP, o PRB e o PSC conseguiram também quantias consideráveis: R$ 19,5 milhões,
R$ 6,5milhões, R$ 4,95 milhões e R$ 2
milhões, respectivamente. PDT, PC do B, DEM, PTB, PTN, PTC, PTdoB e PMN
receberam entre R$ 150 mil e R$ 1,8 milhão.
No ano passado, PT e PSDB mantiveram, de novo, arrecadação
muito próxima dessas mesmas empresas. O partido de Dilma conseguiu R$ 56,38
milhões junto a essas fontes, mas o PSDB de Aécio não ficou muito atrás: obteve
R$ 53,73 milhões. O PMDB ficou em terceiro em arrecadação, mas rivalizando com
os dois partidos que disputaram a Presidência no segundo turno: conseguiu
levantar R$ 46,62 milhões dessas empresas. O PSB de Marina Silva ganhou R$ 15,8
milhões; o DEM, R$ 12 milhões; o PP, R$ 10,25 milhões; o PSD, R$ 7,13 milhões;
e o PR, R$ 6,85 milhões. Os demais partidos arrecadaram entre R$ 3,3 milhões e
R$ 100 mil.
Esses números certamente não querem dizer que todos os
partidos que receberam dinheiro dessas empresas tenham, na verdade, recebido
propina por serviços prestados a elas. Mas indicam que a simples existência de
doações legais ao PT não comprova propina. É preciso que existam provas do
ilícito, e que elas sejam mais consistentes do que a delação de implicados que
são réus confessos e que foram premiados pela Justiça.
É esse legado que o país carrega do caso
Mensalão. Em vez de servir para punir exemplarmente culpados, o Mensalão abriu
o precedente de incluir a Justiça com parte de um terceiro turno eleitoral. A
Justiça brincou de fazer política e não olhou para os precedentes que abria. A
insegurança jurídica que isso causa pode levar no mesmo rodo, no futuro, a água
dos que encenaram o espetáculo da condenação sem provas.
Créditos da foto: Márcia Kalume/Agência Senado
*Jornalista - Via Carta Maior
Nenhum comentário:
Postar um comentário