CPI da Covid e Comissão da Verdade têm mesmo algo em comum
Por Mário Scheffer, no Estadão*
Em transmissão ao vivo nesta semana nas redes sociais, Bolsonaro chamou o relatório da CPI da Covid de “festival de baboseiras” e o comparou à Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada há 10 anos para investigar as violações aos direitos humanos durante a ditadura militar.
Manipulação política da história, o negacionismo foi usado primeiro para se referir à negação da realidade do genocídio dos judeus pelos nazistas e, por extensão, ao não reconhecimento de outros crimes contra a humanidade.
Negador, Bolsonaro usa a mesma retórica para debochar dos efeitos da ditadura e da pandemia, para contestar fatos e memória, o que inclui transformar algozes em heróis.
É elucidativo colocar lado a lado o relatório da CPI e o documento final da CNV, publicado em 2014, assinado pelos respeitáveis José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro Dallari e Rosa Cardoso.
Em um relatório de cinco partes e 18 capítulos, a CNV detalhou as estruturas do Estado usadas pela ditadura, a crueza das práticas e dos casos emblemáticos, listando mais de 300 agentes públicos e pessoas envolvidas com tortura e morte, terminando com recomendações para que atrocidades assim não ocorressem mais no País.
O longo período ditatorial e os quase dois anos pandêmicos são de natureza e contextos totalmente distintos, mas há similitudes na negação.
São idênticas a tese do “revanchismo”, em que militares e agora Bolsonaro seriam os perseguidos, e a acusação de que os “vermelhos” são os verdadeiros responsáveis por toda desgraça.
No caso da pandemia, o relatório da CPI é didático ao apresentar a oposição à ciência, uma nova expressão do negacionismo.
O tema ocupa mais de um terço do documento lido pelo senador Renan Calheiros na última quarta-feira, 20.
Sãos 364 páginas reservadas a explicar como se deu a defesa oficial do tratamento precoce e da imunidade de rebanho, a oposição a medidas sanitárias como lockdown, quarentena, uso de máscaras e distanciamento social, o questionamento da eficácia das vacinas e a tentativa de subtração no número de mortes registradas por covid.
A “engrenagem”, termo do relato, que produziu tantas mortes, contava com aparato oficial, agentes públicos investidos de cargos, gabinete ad hoc e esquema profissional de fake news.
É preciso notar que, sob Bolsonaro, os negadores contam com certo método para desprezar a realidade factual.
As transmissões semanais do presidente na internet ajudam a dar o tom. Foi numa dessas em que ele disse e repetiu que é fácil impor uma ditadura no Brasil.
Em live recente, requentou-se notícia de abril, quando a OMS situava o lockdown no conjunto de estratégias coordenadas, que incluem aumentar os testes, rastrear os infectados e isolá-los.
A ponderação da OMS de que o lockdown era medida de controle complementar e não principal, foi mais vez corrompida por Bolsonaro: “não perdi nenhuma ainda”, “está 7 a 0 para mim”.
O relatório paralelo à apuração da CPI, divulgado pelo senador governista Marcos Rogério, pôs no papel o falatório do presidente: “políticas de lockdown foram implementadas sem considerar o aspecto econômico”.
Da mesma forma, a onipresente cloroquina reapareceu na última live de Bolsonaro, no relatório paralelo e na reunião da Conitec, que deu sobrevida à defesa do uso ambulatorial do chamado “kit covid”, num perigoso uso da máquina pública para sustentação da mentira.
Imperturbáveis quanto às objeções que lhes foram feitas pela CPI, negadores ocupam órgãos oficiais, descontextualizam dados e resgatam documentos para fazê-los dizer o que querem, seguindo na linha de que os fatos provados são falsos, enquanto detalhes e até anedotas adquirem caráter de prova.
Apelam às redes sociais, sítio que dominam, e à liberdade de expressão, fazendo do dogma um objeto legal.
O possível arquivamento das denúncias da CPI ou a ineficácia de eventuais indiciamentos, muitas vezes os farão surgir fortalecidos.
Por isso, em que pesem eventuais soluções jurídicas e políticas, é essencial insistir nas respostas por meio da ciência.
O casamento entre ciência e política foi feliz nos momentos em que os avanços científicos e esforços de pesquisa estiveram identificados de forma inequívoca com melhorias na qualidade de vida das pessoas e com a reparação de tragédias e de erros cometidos.
As evidências produzidas nas universidades sobre a ditadura no Brasil ou sobre o rompimento da barragem de Brumadinho representam um apelo vibrante às vítimas, para que lhes seja feita justiça.
Foi assim no mundo após o Holocausto, a bomba atômica ou o acidente nuclear de Chernobil.
A
ciência tem sido colocada em xeque na pandemia, em alguma medida por causa de
especialistas que servem ao negacionismo e outros que se posicionam por conta
própria, o que se viu até em sessões da CPI.
Pesquisa
de opinião realizada este ano pelo Conselho Europeu para as Relações Exteriores
indagou a pessoas de nove países sobre a imagem que tinham dos experts. Dois
terços dos entrevistados não vêem benefício público no trabalho deles ou
desconfiam que não sejam imparciais.
Em
outro caminho, governos de vários países mantiveram conselhos científicos
consultivos e independentes, representativos de centros de pesquisa,
responsáveis por subsidiar tomadas de decisão de políticas de combate à covid.
Mais
recentemente tem sido delegada a instituições acadêmicas a avaliação criteriosa
das fragilidades das respostas nacionais, visando reformar ou preparar os
sistemas de saúde para novas e futuras emergências.
Reconvocar
a ciência nunca foi tão indispensável.
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