A PL das terceirizações pretende acabar de vez com a
agenda do desenvolvimento para jogar o país na lógica global do neoliberalismo
espoliativo
A
sofreguidão conservadora cometeu um erro do qual talvez não consiga mais se
redimir. Ou pelo menos não tão cedo, nem
tão facilmente.
Vitoriosa
ou derrotada, carregará na testa para sempre a marca de ferro com as iniciais
do seu dono: ‘Fiesp’.
Em ordem
unida, a bancada dos patrões –inclua-se o tucanato e respectivas subespécies do
mesmo ninho ideológico-- abraçou uma
bandeira que empresta incandescente transparência às reais intenções por trás
da cruzada moralista catalisada pela Lava Jato.
A terceirização
total da força de trabalho no país – doa
a quem doer, como parece ser a determinação do adido patronal no Legislativo,
Eduardo Cunha-- carrega abrangência e letalidade suficientes para
expor a matriz dos interesses que hoje fustigam o governo, sangram o PT,
asfixiam a Petrobrás e não hesitam em quebrar o Brasil.
Com tal
radicalidade, a PL 4330 ressuscitou algo que parecia ter se perdido na imparcial conduta do juiz Moro no combate
à corrupção: a luta de classes.
Borrada
igualmente fica a narrativa que equipara
a encruzilhada do desenvolvimento brasileiro a uma monocausal paralisia sanável
com água, sabão, arrocho e fim do
governo do PT.
Nenhuma
faxina restauradora terá o efeito desejado, porém, ressalva o jogral
conservador, se a viga mestra do edifício econômico não for recolocada no
devido lugar: ‘é preciso derrubar o custo Brasil’, cortando a mãe de todos os despropósitos, o custo do
trabalho.
Esse é
o pulo do gato do país de Getúlio Vargas
para o de Aécio, Skaf & Cunha e assemelhados.
A isso
se propõe a PL 4330, ao autorizar o desmonte da CLT em todos os setores, para
todas as funções laborais, em plena retração do emprego e da economia
brasileira.
O
ímpeto conservador quebrou o cristal do combate entre puros e sujos ao fazer
aflorar a pertinência da luta dos trabalhadores e de suas organizações contra a
pantagruélica bocarra dos detentores da riqueza.
Foi
esse discernimento perigoso que escapou da garrafa para as ruas de todo o país
na semana passada, em manifestações de dezenas de milhares de pessoas em 23
estados contra a terceirização.
A
evidência prática do que é capaz uma frente ampla motivada e mobilizada –neste
caso em pouquíssimos dias e com o boicote sabido do dispositivo
conservador-- gerou efeitos igualmente
pedagógicos.
Informe-se
para os devidos fins: a rua funciona.
Lula
sabe disso. Mas o cerco dos punhos de renda ao seu redor insiste em sombrear
seu discernimento.
Desta
vez não deu.
Em
questão de horas, a bancada dos patrões recuou.
Depois
de votar maciçamente pela implosão dos direitos trabalhistas, o Congresso adiou
o escrutínio das emendas finais à PL 4330 para a próxima quarta-feira, 22/04.
Não sem
defecções.
Metade
da bancada do PSDB hesita agora em expor seu rosto e seu nome na votação final.
A rua funciona.
Essa lição tem um valor inestimável nos dias que
correm.
Em
primeiro lugar, para tirar o campo progressista do atoleiro das elucubrações
existenciais e focar no que importa.
O que
importa, insista-se contra o enfado dos punhos de renda, é construir nas ruas a
frente ampla progressista que pode representar os intereses majoritários da
sociedade no enfrentamento da ofensiva das elites.
O
conservadorismo brasileiro, guardadas as devidas proporções, resolveu reeditar
aqui o 1984 inglês.
Como se
sabe, o 1984 inglês passou à convenção dos valores mercadistas como o ano em
que o neoliberalismo veio à luz, graças à derrota sangrenta imposta por
Margareth Tatcher a uma greve de mineiros de carvão que durou um ano.
O
sindicato era um símbolo da luta operária europeia tendo sido o principal
responsável pela conquista de uma avançada legislação de direitos trabalhistas
ainda no século XIX.
A
primeira ministra conservadora tinha opinião formada sobre isso.
“Maggie’
encarava o poder mineiro como a antessala do comunismo.
Via na
sua tenacidade um inibidor da liberdade dos mercados, que onerava os custos de
produção, alimentava a inflação, corroía a competitividade da economia inglesa
nos mercados mundiais.
Soa
familiar?
Exatamente.
Para
esmagar os mineiros, a primeira-ministra, cuja morte em abril de 2013 inspirou
um animado carnaval fora de época nas ruas da Inglaterra, não poupou
truculência e contou com a solidariedade de classe.
Reagan
forneceu carvão a baixo custo à amiga ‘Maggie’
para que seu governo pudesse atravessar o inverno rigoroso da velha
Albion, sem ceder aos trabalhadores.
Vitoriosa,
Tatcher aproveitou o refluxo do movimento operário para completar o serviço.
Uma
legislação restritiva imobilizou os sindicatos.
A
mudança na correlação de forças pavimentou a desregulação e a privatização da
economia inglesa, consolidando-se então as bases do que ficaria conhecido como
a hegemonia neoliberal no planeta.
O
triunfo, porém, não teria sido tão
retumbante – pelo menos não a ponto de
oferecer uma nova síntese capitalista--
sem a rendição do Partido Trabalhista, de Neal Kinnock.
Objetivamente,
os trabalhistas –a social democracia inglesa-- deixaram os mineiros sem
retaguarda política ao aderir aos albores do neoliberalismo.
Anos
mais tarde, ao fazer um balanço do seu ciclo, Tatcher mostrou-se reconhecida.
Ao ser indagada sobre qual teria sido a
sua principal obra, respondeu com um sorriso mordaz: ‘Tony Blair’.
O
desafio da frente ampla progressista é não permitir que 2015 seja o 1984
brasileiro.
Não é
pouco o que está em jogo.
A PL
4330 não é um embate pontual.
Trata-se
de uma chave-mestra.
Com ela
pretende-se arrombar a agenda do
desenvolvimento para, de uma forma definitiva, enquadrá-lo na lógica global do
neoliberalismo espoliativo.
A
exemplo do que se passou sob Tatcher, a desregulação do mercado de trabalho
brasileiro não apenas favorece essa mutação.
Ela
torna essa travessia funcional; estruturalmente compulsória.
Ao
desativar o potencial ordenador que a pujança do mercado de massa brasileiro
exerce nas balizas do desenvolvimento, abrem-se as portas para uma
mexicanização da economia.
Mão de
obra barata e pobreza sem fim; abertura comercial desenfreada e desmonte de
políticas soberanas de desenvolvimento.
Nem
Brics, nem pré-sal, nem integração latino-americana.
Maquiladoras,
Alca, desigualdade, gangues, anomia.
Revogada
a estaca estruturante deixada por Vargas –que redundou no sindicalismo
metalúrgico do ABC e num Presidente operário até hoje não digeridos pelas
‘classes produtivas’ (sic) tudo o mais
escorre com a água do banho.
Políticas
sociais, previdência universal, valorização do salário mínimo, SUS etc
Não há
tempo para ingenuidade.
A
velocidade espantosa com que as coisas se dão exige respostas de uma prontidão
engajada e corajosa.
Há
apenas dois anos, o país discutia o ‘apagão’ de mão de obra e a frontera do
pleno emprego.
Em
29/04/2013, uma reportagem de ‘O Globo’
tinha como título: ‘’Dificuldade para contratar, a maior queixa das
empresas’. O texto exprimia a insatisfação empresarial com uma taxa de
desemprego que escavava o seu ponto mais baixo em uma década.
‘O
apagão, antes concentrado em cargos mais qualificados, começa também a chegar a
outros setores, como construção civil e comércio’, lamentava a reportagem.
Derrubar
as pilastras do pleno emprego e de seus desaforos intrínsecos – salários reais em alta, benefícios maiores,
sindicatos fortes e empregados altivos — é a obra demolidora a que se atira
diuturnamente o mutirão do arrocho desde então.
É essa
a filiação da A PL 4330.
Trata-se
de uma marretada de classe; uma margareth tatcher na forma de lei.
Para
demolir ao mesmo tempo dois inconvenientes: o custo do trabalho e o poder
político do trabalhador.
A
ambição não é nova.
Em
2001, uma legislação equivalente foi aprovada na Câmara Federal, presidida
então pelo tucano Aécio Neves.
Antes
que a medida chega-se ao Senado, porém,
Lula chegou ao poder.
Arquivou-se
por 14 anos o assalto à carteira do trabalho.
A
vulnerabilidade atual do PT, associada à
transição de ciclo econômico que estreitou a margem de manobra do governo,
reabriu a ‘cunha’ para ombrear o país ao mundo e colocar de joelhos o trabalho
assalariado.
Lênin
classificava esse tipo de ofensiva como ‘formas científicas de extrair o suor’.
Assim
como a reengenharia dos anos 80, o downsizing
da década seguinte, o assalto ao suor do povo brasileiro agora é vendido
à opinião púbica como um poderoso impulso ao crescimento e à criação de vagas.
Se a
experiência precedente servir de parâmetro não há razões para tanto otimismo.
Como
diz o editorial de Carta Maior no Especial sobre os Brics (leia nesta pág) :
‘A devastação do mundo do trabalho pelo
desemprego e a supressão de direitos é a tônica do nosso tempo. É como se
uma gigantesca engrenagem cuidasse de tomar de volta tudo
aquilo que transgrediu os limites da democracia política formal em direção a uma verdadeira democracia econômica e
social.
Instala-se
em seu lugar um paradigma de eficiência feito de desigualdade ascendente.
A
política contribuiu de maneira inestimável para o modo como essa lógica se
impôs.
Erros e
derrotas acumulados pela esquerda mundial desde os anos 70, sobretudo a
colonização de seu arcabouço programático pelos valores e interditos
neoliberais – de que tanto se orgulha Tatcher--
alargaram os vertedouros de uma dominância financeira cuja presença
tornou-se ubíqua em todas as esferas da vida humana.
A queda
do Muro de Berlim, em 1989, consagraria
aquilo que os mais apressados se atreveram a denominar de ‘fim da historia’.
Não era. Mas os sinais vitais nunca se mostraram tão frágeis para inaugurar um
novo ciclo.
Não por
acaso, ao sobrevir o colapso neoliberal em 2008 configurou-se ineditamente uma
ruptura capitalista desprovida de força social capaz de transformá-la em
mudança de época.
O que
se paga agora em perdas e danos sociais é a fatura desse vazio’.
Para
clarear as coisas: não foi a crise atual que gerou o arrocho e a pobreza em
desfile no planeta.
Foi a
precarização do trabalho irradiada desde meados dos anos 80, bem como a
implosão das fronteiras nacionais do desenvolvimento –sobretudo com o advento
das cadeias globais na indústria-- que conduziram ao desfecho explosivo da
crise de 2008.
Para
quem cogita que a PL 4330 possa conter uma semente de mostarda de modernidade e
de capacidade de regeneração do crescimento e do emprego brasileiro , vale
lembrar:
Reagan
em 1981, antes até de Tatcher, impôs um derrota
simbólica esmagadora à greve dos
controladores de vôo norte-americanos. A partir daí, desencadeou um
devastador sucateamento laboral nos EUA.
Fatos:
-desde
2000, a classe média americana munida de diploma universitário não tem aumento real de poder de compra;
-mais
de 46 milhões de norte-americanos vivem agora na pobreza, constituindo-se na
taxa mais elevada dos últimos 17 anos: 15,1% ;
-em
termos absolutos, o contingente atual de pobres dos EUA é o maior desde que
Census Bureau começou a elaborar as estatísticas há 52 anos.;
-os EUA
gastam atualmente US$ 80 bi por ano com
ajuda alimentar - o dobro do valor registrado há cinco anos;
- desde
os anos 80, a dependência de ajuda para alimentação cresce mais entre os
trabalhadores com alguma formação universitária -- sinal de que sob a égide dos mercados desregulados, a ex- classe média afluente não consegue
sobreviver sem ajuda estatal;
-
cerca de 28% por cento das famílias que
recebem vale-refeição são chefiadas por uma pessoa com alguma formação
universitária;
- hoje
o food stamps atende 1 em cada sete
norte- americanos;
-
de 2000 a 2011 , salários baixos e
desigualdade foram responsáveis por 13%
da expansão do programa – contra 3,5% entre 1980 e 2000;
-
pesquisas relativas ao período de 1979 e 2005 (ciclo neoliberal anterior à
crise) revelam que 90% dos lares norte-americanos viram sua renda cair nesse
período; apenas 1% das famílias ascendeu à faixa superior a meio milhão de
dólares;
- 21%
dos menores norte-americanos vivem em condições de pobreza atualmente.
O
quadro acima não é genuíno.
Um
quarto de todos os lares da Inglaterra e País de Gales, cerca de 20 milhões de
pessoas, vive em estado de pobreza atualmente, num sólido legado de sucessivos
governos neoliberais, desde Tatcher, passando por Blair até chegar a Cameron;
-relatório
recente da OCDE - não propriamente uma trincheira progressista -- indica que a
renda média de 10% das pessoas mais ricas nos países desenvolvidos é nove vezes superior à renda media dos 10%
mais pobres.
Foi
sobre essa base social esfacelada pela precarização e a transferências de
empregos e empresas às 'oficinas asiáticas', que se instalou o colapso
neoliberal.
Ao
incentivar o consumo dos sem renda com uma oferta desmedida de crédito, a
especulação financeira desencadeou a espiral que levaria às subprimes.
O resto
é sabido.
Ao
contrário do que afirma o trio Cunha, Skaf & Aécio, portanto, o desmonte do
mundo do trabalho não apenas se revela uma resposta inadequada à superação da
crise e à criação de vagas , como se destaca entre os fatores que desencadearam
o seu colapso nas nações ricas.
Estamos
falando de economias cuja participação do trabalho na renda nacional –embora declinante— ainda é bem superior à
brasileira, que recuou de mais de 56% nos anos 50, para um patamar inferior a 40% ao final do
governo FHC.
Embora
tenha retomado a curva ascendente no ciclo do PT, persiste ainda
muito distante do pico registrado há mais de meio século.
É sob
esse pano de fundo que a PL 4330 evidencia seu impulso regressivo, capaz de
arrastar diferentes elos e dinâmicas da luta pelo desenvolvimento no século
XXI.
Esse
risco gigantesco, paradoxalmente, encerra também o poder de desencadear o seu
antídoto.
Qual?
A
energia coletiva hoje desperdiçada em descrença individual, prostração
solitária, perplexidade imobilizante, sectarismo ideológico e uma incontável
constelação de pequenas reuniões em casas de amigos, em foruns sindicais, em
debates universitarios e conversas avulsas de brasileiras e brasileiros inconformados com o assalto conservador em
marcha no país.
As
manifestações do último dia 15 podem ter sido a primeira trinca nesse dique de
perplexidade em direção a uma frente ampla da revolta com o desassombro, da esperança com o
engajamento coletivo.
A
petulância conservadora chegou a tal ponto no Brasil que o presidente da Câmara
marcou a nova votação do PL 4330 para a semana anterior ao 1º de Maio.
Chegou a tal ponto que devolveu o sentido de ir às ruas neste dia 1º de Maio de 2015.
A ver.
*Jornalista - Fonte: Carta Maior
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