domingo, 30 de abril de 2017

Belchior me ensinou que a felicidade é uma arma quente


Por Nathalí Macedo*
Belchior foi o meu primeiro contato com a poesia da vida real, quando meu pai ouvia o vinil de “Coração Selvagem”  em manhãs de domingo tão melancólicas quanto esta e eu me deixava fisgar, sem nenhuma relutância, pelos versos que de tão autênticos me pareciam epifanias, embora eu ainda não soubesse que se chamavam epifanias.
Quando me disseram que era estranho que uma criança gostasse de Belchior “porque é cafona”, entendi: São cafonas os mais sensíveis. E comecei um romance eterno – ainda que na divina comédia humana nada seja eterno – com a cafonice. E com Belchior.
Nessa época eu ainda não sabia que o “cantor cafona” fabricado pela indústria fonográfica era, na verdade, um gênio. Não era ainda capaz de captar seu apelo em nos chamar para a realidade – em chamar a própria arte para a realidade -, ainda não percebera que o seu engajamento político não se deixara engolir pela famigerada indústria cultural, mesmo porque não sabia ao certo o que eram engajamento político e indústria cultural, mas sabia, sensitivamente: falávamos o mesmo dialeto. O dialeto da alma.
Cresci. E o tempo, você sabe, “andou mexendo com a gente”, mas Belchior continuou me compreendendo em todos os anos da minha vida desde então (costumava pensar, sem certeza, que a arte existe para nos compreender).
Me compreendeu quando não estive – quase nunca estou – interessada em nenhuma tiuria. Me abraçou nos dias em que estive cansada do peso da minha cabeça. E nos dias de apatia, me disse que a felicidade é uma arma quente.
Então, mesmo sem alma infantil, eu continuo entendendo sensitivamente – como tem que ser – a poesia de Belchior.
A diferença é que agora eu já consigo alcançar – ainda que nem de longe satisfatoriamente – a magnitude de sua importância para a música brasileira, o modo fascinante como ele ajudou a construí-la, a relação pura e bonita que manteve com a arte. Posso me deixar acolher pela “emoção democrática de quem canta no chuveiro e faz arte pela arte sem cansar a sua beleza.”
Belchior foi um provocador, daqueles dos quais um país como o Brasil necessita. A humanidade, eu diria, necessita. Questionou o capitalismo e, mais do que isso, o trabalho alienado como ladrão de subjetividades muito mais eficientemente que muito cientista político que conheço.
Antes de poética, a música de Belchior é filosófica, porque toca em algumas das mais profundas questões humanas – a política, o trabalho, o tempo, o amor –  com a esperança lúcida dos artistas maduros a as canções de arranjos simples, “falando fácil, muito fácil, claramente”, para ser de fato democráticas, para que todo mundo entenda – até mesmo uma criança de 8 anos.
Belchior, que me abraçou como criança, agora me abraça como artista, como mulher e como pessoa que politiza sua condição, porque a arte, agora penso, não existe apenas para nos compreender – e talvez seja mesmo, para além disso, um dos atos mais políticos de nossa existência.
Então quando Nietzsche escreve que “a arte existe para não morrermos com a verdade”, não me ocorre qualquer constrangimento em discordar, porque “a minha alucinação é suportar o dia-a-dia, e o meu delírio é experiência com coisas reais.”
E mesmo compreendendo a arte política de Belchior como imortal, hoje o dia teima em ser triste porque perdemos a chance de ver e ouvir tudo o que ele ainda poderia fazer. Porque o Brasil ainda necessita de artistas como ele.
Mas ele fez tanto por mim que tudo o que consigo, com lágrimas nos olhos, é lhe agradecer em silêncio.
“Não sou feliz, mas não sou muda. Hoje eu canto muito mais.”

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