Erico Verissimo deve ser muito lembrado num momento como esse, em que os princípios volúveis tomam conta e a coerência se torna mais rara do que já foi. |
Por Tarso Genro*
Quando fixei residência em
Porto Alegre, no início do ano de 1973, confessei ao querido amigo já falecido,
Laci Osório, que o meu maior desejo como pretenso intelectual e ativo militante
da esquerda “radical” (como dizem hoje alguns colunistas para estigmatizar a
esquerda), era conhecer Erico Verissimo. Eu achava, sinceramente, que se
tratava de um projeto impossível, mas o poeta Laci — ativo militante do velho
partidão, admirador sem reservas e amigo de Érico — logo providenciou o
encontro.
Quando o dia “D” chegou eu
estava bastante tenso. Levava — juntamente com o Laci — um pequeno volume de
poesias “sociais” de minha autoria, de valor duvidoso, para presentear ao nosso
anfitrião. Erico sempre recebia visitas no fim da tarde. Conversava
descontraído, valorizando o interlocutor e semeava, com a sua voz pausada de
contador de estórias, a grandeza intelectual e moral com que levava a sua vida
de escritor e cidadão.
Repeti a visita algumas
vezes e ainda cumpri uma tarefa que a minha mãe, Elly, que me despertou o gosto
pela leitura, me havia comissionado: “quero conhecer o Erico!”, ela mandou.
Quando lhe contei das minhas já duas visitas na Felipe de Oliveira, certamente
ela pensou que isso seria fácil. E foi. Falei com a Mafalda e ela, no ato,
marcou a hora para o nosso novo encontro.
Lá fui com a minha mãe, numa
bela tarde de 74, visitar Erico Verissimo. Foi um episódio emocionante e
Mafalda, quando abriu a porta para nos receber, disse uma frase que aumentou
meu prestígio intelectual na família: “Tarso, o Erico já estava sentido falta
da tua visita.” Evidentemente que a sensibilidade humana da Mafalda inventou o
“sentir falta”, para prestigiar um jovem projeto de escritor, recentemente
vindo de Santa Maria, que trazia a mãe para conhecer o seu marido e brilhante
escritor. A grandeza humana de Mafalda não ficava um milímetro abaixo do Erico.
Lembrei-me de Erico, neste
momento, a propósito de uma magnífica entrevista concedida por ele em 1967, a
Adolfo Braga. Nela, discorria sobre seu último livro então lançado, “O
Prisioneiro”, e justificava o tema escolhido (guerra do Vietnã), fazendo
referência a um dos personagens do romance, o Tenente negro, torturador do
vietcong aprisionado e sob inquisição: “Ao escolher para o papel de inquisidor
um tenente negro, eu também pude incluir na minha história o problema do homem
de cor norte-americano. Existem 30% de soldados negros lutando no Vietnã. Eles
defendem uma civilização que os repudia e esse é um dos absurdos de toda essa
situação. Estamos em tempo de guerra, injustiças, absurdos, equívocos, mortes e
destruição. É natural que tudo isso sensibilize um escritor que não vive numa
torre de marfim.”
Erico caracterizava a
agressão norte-americana ao Vietnam, na mesma entrevista, como “uma guerra
ideológica, mas é sobretudo uma guerra de disputa econômica, de trustes e
cartéis.” Hoje os “trustes” e “cartéis” estão um pouco invisíveis, pois quem
fala diretamente são as agências de risco e suas estruturas privadas de caráter
especulativo, comandando diretamente as ações dos Governos. Mas as mortes, o
absurdo e a destruição, permanecem iguais ou piores.
Na mesma entrevista,
questionado sobre a situação de ser um escritor “alienado”, o autor do “O Tempo
e o Vento”, “Senhor Embaixador”, “O Prisioneiro”, “Caminhos Cruzados” diz, não
sem alguma ironia benigna: “Veja você: Engels, que não foi propriamente do PSD,
disse que Balzac, com seus romances, prestou mais serviços a causa do
socialismo, mesmo sendo um conservador, do que se escrevesse panfletos
políticos.” Para quem não lembra, o grande crítico do modo de vida burguês e da
superficialidade que caracterizava a vida burguesa do Século 19, Honoré de
Balzac, era ideologicamente um reacionário e politicamente um legitimista
antirrepublicano.
Luis Fernando Veríssimo abre
o livro de entrevistas em que me apoio (“A liberdade de escrever”, Edipucrs e
Ed. da Ufrgs) com uma precisa e sintética apresentação, como é do seu feitio,
dizendo que o personagem principal das entrevistas, além de dar um testemunho
sobre o seu tempo “manteve uma coerência também rara numa época de princípios
volúveis”. Erico Verissimo deve ser muito lembrado num momento como esse, em
que os princípios volúveis tomam conta e a coerência se torna mais rara do que
já foi.
Coerência rara em época de
princípios volúveis! Frases como esta, com a capacidade de sintetizar
exigências mínimas para todo um período de lutas, recuos, dificuldades, com
matizes e relações dissolvidas pela descartabilidade, crescente indiferença
pela a morte, a dor, a tortura — na “sociedade líquida” como diz Zigmund Bauman
— frases como essa, poderiam ser tuitadas nas redes todos os dias. Elas
ajudariam as pessoas a refletirem, a não se ofenderem, a não trocarem o argumento
pelo ódio e o ataque político pela difamação.
O tipo de crise que
atravessa o capitalismo, com a substituição dos valores do trabalho pela
possibilidade do enriquecimento sem trabalho, a substituição de uma sociedade
produtora de bens necessários para a reprodução de uma vida digna por uma
sociedade de consumo irracional e predatória, só pode ser resolvida com a
formação de uma consciência majoritária na sociedade. É a consciência do
abismo. De um abismo para todos, de todas as classes, de todos os ritos
religiosos, de todos os territórios. A consciência de que tudo poderá terminar
para os nossos filhos e netos, como disse T.S. Elliot, não “com um estrondo,
mas com um gemido.” Dezenas de Ericos fariam um bem enorme ao nosso Brasil.
*Tarso Genro é Advogado; foi governador
do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça,
Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil. - Fonte: Sul21
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