Por Luiz Cláudio Cunha*
O
Brasil descobriu nos últimos dias que a tropa de elite dos altos escalões da
República que combate a verdade é mais forte e abusada do que se imaginava.
Cerram fileiras ali, entre outros, o Ministro da Defesa, comandantes do
Exército e da Marinha e até mesmo um dos sete ilustres membros da Comissão
Nacional da Verdade (CNV), que deve ser a primeira trincheira de seu resgate
perante o país.
As
fantasias foram rasgadas, de vez, com a apresentação em Brasília, na
terça-feira (21), do balanço do primeiro ano de atividades da CNV. Ali, com
gráficos e documentos inquestionáveis, a historiadora Heloísa Starling, da
Universidade Federal de Minas Gerais e coordenadora da pesquisa da CNV,
apresentou dados perturbadores sobre a repressão que marcou a ditadura de 1964-85.
Entre eles, a grave acusação de que, em plena democracia, a Marinha mentiu para
o Palácio do Planalto. Em 1993, o presidente Itamar Franco pediu dados sobre
desaparecidos. A Marinha informou que os presos citados tinham fugido ou
estavam sumidos. Baseada no cruzamento de 12.072 páginas do CENIMAR, o serviço
secreto da Marinha, a equipe de pesquisa da CNV apurou que 11 pessoas daquela
lista estavam mortas até dezembro de 1972 — e a Marinha sabia disso. Um dos
mortos, cujo nome a Marinha sonegou a Itamar Franco, era o ex-deputado Rubens
Paiva, preso e desaparecido em janeiro de 1971.
“É
o primeiro documento oficial que diz que Rubens Paiva está morto. A Marinha
brasileira ocultou deliberadamente documentos já no período democrático”,
declarou Starling. A Marinha reagiu no mesmo dia, burocraticamente, sem
desmentir a acusação e sem rebater o que revelam seus arquivos secretos: “Não
há qualquer outro registro nos arquivos desta Força, diferente daqueles
encaminhamos ao Ministério da Justiça em 1993”, gaguejou a Marinha, em sua
inconvincente nota oficial.
Dias
antes, quem tropeçou foi o Exército. No sábado, 11 de maio, o tenente-coronel
André Alves, comandante do 2º Regimento de Cavalaria Mecanizada de São Borja
(600 km a oeste de Porto Alegre) informou ao prefeito Farelo Almeida que o
Exército não atenderia seu pedido para fazer a segurança do túmulo do
ex-presidente João Goulart (1919-1976), filho ilustre da cidade e enterrado há
36 anos no cemitério local, o Jardim da Paz. A pedido da família Goulart, a CNV
aprovou a exumação dos restos de Jango para esclarecer, com a ajuda de peritos
internacionais, a suspeita de que o ex-presidente foi envenenado, no exílio, no
marco da Operação Condor, a conexão repressiva que unia as ditaduras do Cone
Sul na década de 1970.
O
oficial de São Borja disse ao prefeito que o pedido fora avaliado e negado por
seu chefe imediato, o general Geraldo Antônio Miotto, comandante da 3ºª Divisão
de Exército, baseada em Santa Maria.
A
alegação do general para a recusa soou sobrenatural: “A área não é jurisdição
das Forças Armadas”. Estranho seria se fosse. Exércitos não existem para
patrulhar cemitérios, embora a História mostre que eles costumem povoá-los com
os mortos de guerras ou de golpes de Estado que eles patrocinam. O general
definiu que a missão de vigilância cabia à Brigada Militar (a força pública
estadual) ou à Guarda Municipal, esquecido que a questão central aqui não é a
‘área’, mas a missão que lhe incumbe neste caso dos restos mortais de Jango.
Não
compete a qualquer general definir que a guarda do cemitério, neste tema
específico, seja encargo do Estado ou do Município. A decisão de exumar o
ex-presidente derrubado em 1964 pelo Exército a que o general Miotto hoje serve
não é preciosismo de lideranças municipais ou de comandantes estaduais. É uma
decisão política do mais alto nível, adotada pela CNV em Brasília, articulada
com a família Goulart e especialistas forenses de outros países, e que a
ninguém mais cabe discutir. Ao Exército, como sempre, resta cumprir ordens.
Ninguém
é ingênuo para imaginar que a recusa institucional do Exército de dar segurança
a esta missão federal seja mero rompante de um tenente-coronel de São Borja ou
de um general de Santa Maria. Pelas implicações políticas envolvidas, parece
óbvio que a recusa tenha sido acertada dentro da escala de comando. Pela cadeia
hierárquica, progressivamente, o general Carlos Bolívar Goellner (comandante
Militar do Sul), o general Enzo Martins Peri (comandante do Exército em
Brasília) e o chefe de ambos, o embaixador Celso Amorim (ministro da Defesa).
Todas
estas estrelas fulgurantes não perceberam o dano político provocado pelo ‘não’
burocrático da guarnição militar do sul. Seria tão mais simples atender ao
pedido elementar do prefeito, sem apelar para as tecnicalidades e pretextos
jurídicos que só escancaram uma situação melancolicamente clara: o Exército não
é parceiro da CNV e da sociedade brasileira na luta para descobrir a verdade. (...)