sábado, 19 de setembro de 2015

O Vinte de Setembro, um equívoco



Por Paulo Muzell, no Sul 21*

A historiadora Sandra Jatahy Pesavento observa que a ideologia é o elemento de força coesiva da classe dirigente. Com ela constrói a “ideologia orgânica”. Através da parcialidade e da deformação, filtra valores e “reinterpreta” os fatos, impondo como verdade a versão que atende seus interesses. Sua visão de mundo torna-se “oficial”, institucionalizada, imposta e aceita pelas demais classes e grupos sociais. Ela resumiu utilizando a feliz expressão de “construção da falsa consciência”.

O episódio Farroupilha, a chamada “Guerra dos Farrapos – 1835/1845” é um clássico exemplo. A versão oficial exalta sua figura maior, Bento Gonçalves, saudado como líder autêntico, generoso, altivo, audaz, um “herói” justamente reconhecido como o “maior rio-grandense de toda nossa história”. Uma história pobre e recente: o Rio Grande existe a pouco mais de dois séculos e meio.

Além da exaltação do herói maior, a insurreição é “vendida” como autêntico fenômeno revolucionário, avançado, movido por uma vocação liberal, republicana e antiescravagista. É o destemido espírito gaúcho que, mui justamente, se rebela contra um governo imperial opressor, cobrador de extorsivos impostos. Constrói-se uma versão simplificada que não distingue os proprietários de vastas extensões de terra dos pobres peões e escravos. As diferenças de classe são ignoradas, desconsidera-se o contexto social: riqueza e grande propriedade de poucos convivendo com escravidão e miséria da maioria.

O que os grandes proprietários rurais na verdade queriam era não pagar impostos sobre o charque e o sal. Ressalve-se, que decorridos mais de um século e meio do fim do episódio farroupilha, até hoje não pagam o Imposto Territorial Rural (o ITR). Impedem os técnicos do INCRA de entrar em suas propriedades. Criaram e armaram a famigerada União Democrática Ruralista, a UDR.Os farrapos queriam implantar o parlamentarismo e com isso aumentar o poder do Legislativo, ou seja, o seu poder. Viam como indesejável a presença do Estado na economia, defendiam o laissez-faire, o livre mercado. Ou seja,foram os precursores de partidos que surgiram bem mais tarde, como o PL, o PRP e a UDN, mais tarde apoiados pelos setores mais atrasados do PSD. Na ditadura militar com o fim do pluripartidarismo se unificaram sob a sigla ARENA, mais tarde PDS. Atualmente ainda estão aí, escudados e representados pelo PP, DEM e PSDB.

Assim a figura do gaúcho farroupilha foi idealizada. Seus atos – que incluíam roubo de gado, invasão e expropriação de terras, estupros e até degola – por um passe de mágica viraram epopéias, louvadas num verso do hino estadual: “sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra”. Uma falsa versão dos fatos alimentou e institucionalizou um injustificado ufanismo. Há poucos dias atrás num CTG de Santana do Livramento ocorreu mais uma “façanha”: a queima de um pavilhão onde seria realizado um casamento gay.

Bento Gonçalves sequer era republicano, proclamou a República do Piratini porque ambicionava o poder. República efêmera, não mais do que um fracassado sonho separatista que, infelizmente, perdura até hoje. Também não era um abolicionista: ao morrer constavano seu patrimônio o registro de 50 escravos. No final da guerra, totalmente derrotados, os principais líderes do movimento só se preocuparam em negociar no Rio de Janeiro as indenizações de guerra a serem pagas pelo poder central, além dos cargos, patentes e soldos que receberiam pela sua integração ao Exército Imperial.

Em novembro de 1844 um dos líderes do movimento, David Canabarro, protagonizou o episódio mais sórdido da guerra: o conhecido massacre de Porongos. Traiu um grupo de mais de cem lanceiros negros que foram por ele liberados, supostamente libertos, desarmados, entregues como gado, para serem vítimas de uma cilada: um brutal ataque previamente combinado com Duque de Caxias, o chefe das forças imperiais.

O gaúcho a cavalo é o símbolo de uma das faces de um Rio Grande dual. A mais atrasada e desigual. De grandes propriedades de criação intensiva de gado, com baixa produtividade. Renda e propriedade excessivamente concentrada. Poucos empregos mal remunerados. No outro Rio Grande, fortemente marcado pela migração européia, especialmente de italianos e alemães temos um grande número de pequenas e médias propriedades rurais familiares, produtivas, que plantam a uva, fazem o vinho, cultivam o milho e pomares. Têm melhor distribuição de renda, mais emprego, comércio intenso e maior diversificação na prestação de serviços. É o vale do Taquari, são os campos da Serra, a capital, beneficiada pelo estuário do Guaíba e pela urbanização de Pelotas e da crescente importância do porto marítimo de Rio Grande. Um Rio Grande do Sul mais moderno, urbano, com melhores condições de vida para a população. Infelizmente esquecido e secundarizado pela historiografia oficial.

A própria literatura e a música gaúcha destacaram o caráter de aventura e do épico do desafio da ocupação dos grandes espaços, presente na talentosa música de Vitor Ramil. Zonas de permanentes conflitos, de disputas fronteiriças, de enfrentamento dos “castelhanos” em guerras sem fim, contadas por Josué Guimarães no seu “A ferro e fogo”. Os dois maiores e mais conhecidos escritores gaúchos, Érico Verissimo e Simões Lopes Neto priorizaram também este Rio Grande em suas obras, que mais recentemente foram popularizadas pelo cinema através de superproduções ou de séries de tevês. Infelizmente, em versões glamourizadas, hollywoodianas, que pouco ou nenhum compromisso tem com a história real.

*Paulo Muzell é economista. (Com  o Blog Praia de Xangrilá) - via //www.sul21.com.br/

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