Ulisses Guimarães |
A PEC do golpe viola a Carta de 1988 que sempre foi vista
pela aduana dos abastados como um bote apinhado de gente perigosa.
Por Saul Leblon, na Carta Maior*
Em cinco de outubro de 1988, a
nação que vivia desacolhida dentro do próprio país conquistou um bote para
remar seu anseio por pátria e cidadania.
Com as virtudes e defeitos
sabidos, a Constituição Cidadã, promulgada há 28 anos, esticou o pontão dos
direitos sociais --no que tange à lei--
ao ponto mais avançado permitido pela correlação de forças que sucedeu à
ditadura.
Conduziu-a um impulso gigantesco
de ondas políticas sobrepostas.
A resistência heroica à ditadura,
em primeiro lugar.
Mas também os levantes operários
surpreendentes registrados no ABC paulista, nos anos 70/80.
Metalúrgicos liderados então por
uma nova geração de jovens sindicalistas, afrontaram a repressão e o arrocho,
paralisaram fábricas, encheram estádios e igrejas, tomaram praças e ruas.
Irromperiam assim nacionalmente
como a fonte nova da esperança, dotada de força e merecedora do consentimento
amplo para falar pela sociedade, mas sobretudo pelas famílias assalariadas em
defesa do pão e da liberdade.
Como uma onda oceânica de
dimensões até então desconhecidas, o levante metalúrgico seria sucedido de um
explosivo anseio por direitos, que levaria milhões às ruas na campanha política
mais avassaladora da história nacional: as ‘Diretas Já!’, pelo fim da ditadura.
Trincou ali o mar glacial da
desigualdade brasileira.
O degelo esticaria a fronteira da
democracia na reordenação do país a cargo da Assembleia Constituinte de
fevereiro de 1987.
‘Não é a Constituição perfeita,
mas será útil, pioneira, desbravadora’, diria Ulysses Guimarães, vinte meses
depois, na promulgação da carta.
‘Será luz, ainda que de
lamparina, na noite dos desgraçados’, profetizou então o ‘senhor Diretas’.
A lamparina dos desgraçados
bruxuleia agora na ameaçadora noite de ventania que acossa o Brasil dos
golpistas de 2016, que pretendem viola-la por vinte anos naquilo que é a
essência da sua identidade: ser o abrigo de direitos básicos essenciais e
universais, como o direito à alimentação, a saúde, à escola, a oportunidades iguais na infância e à
dignidade na velhice.
Quase três décadas depois de
abertas as portas constitucionais dessa acolhida, o Brasil que vivia na soleira, do lado de
fora do mercado e da cidadania – encontra-se
de novo ameaçado de banimento.
São os ‘nossos árabes’, diria
Chico Buarque de Holanda, em síntese premonitória, em 2004.
Vale a pena reler a sua
entrevista pela assustadora atualidade de suas palavras.
O que fica claro na percepção
aguçada do artista, então, é a natureza estrutural do ódio de classe hoje
aguçado e disseminado, como se viu nas eleições municipais, por um combate
seletivo à corrupção, determinado na verdade a cometer um politicídio contra o
Partido dos Trabalhadores que emergiu nesse processo.
A verdade é que a opção pelo apartheid em
detrimento da nação foi apenas superficialmente dissimulada no interregno
recente de expansão do PIB.
Aquilo que latejou em banho maria
dentro das caçarolas francesas, voltaria a borbulhar com violência, porém, ao
primeiro sinal de aguçamento do conflito distributivo, agora caramelizado de
indignação ética.
A percepção de Chico há 12 anos,
no início do processo, evidencia que sempre fomos os mesmos.
O que se diz dos ‘nossos árabes’
agora é que já não cabem no orçamento.
Ou como prefere a dissimulação
técnica da guerra social: ‘A Constituição de 1988 não cabe no equilíbrio
fiscal’.
Coisas parecidas são ditas nesse
momento por governantes e extremistas de uma Europa que não sabe o que fazer
com seus próprios ‘árabes’ – mais de 20 milhões de desempregados criados pela
austeridade neoliberal — vendo na chegada dos de fora, os refugiados, os migrantes, o risco de um
desnudamento social explosivo.
O fato é que a Carta de 1988
sempre foi vista pela aduana das classes abastadas como um bote apinhado de
gente perigosa.
Lei escrita na contramão do
espírito da época, ela afrontaria a ascensão das reformas neoliberais em
marcha, irradiadas de um triângulo sugestivo.
Dele faziam parte um golpe
sangrento (Pinochet;1973); uma contrarreação ao poder sindical e trabalhista na
sua principal trincheira (Thatcher; 1979)
e um cowboy determinado a regenerar o poder do dólar no velho oeste do
capitalismo (Reagan; 1981).
Quando Ulysses Guimarães proferia
seu discurso histórico em 5 de outubro de 1988 enaltecendo a coragem
constituinte de fazer do Brasil ‘o
quinto país a implantar o instituto moderno da seguridade
(social), com a integração de ações relativas à saúde, à previdência e à
assistência social, assim como a universalidade dos benefícios (da
aposentadoria) para os que contribuam ou não...’, Tatcher reinava no
antepenúltimo dos seus 11 anos dedicados a
erigir uma referência de devastação dessa mesma matriz de direitos
sociais civilizatórios.
O Chile havia perdido uma geração
assassinada, presa ou exilada, pavimentando-se assim o estirão precursor
daquilo que hoje se conhece pela senha de ‘reformas’.
Quando Ulysses encerrava sua
saudação com o brado ‘Muda Brasil!’, Reagan percorria o penúltimo ano do seu
segundo mandato.
Seria sucedido por Bill Clinton,
o democrata amigo do PSB.O marido de Hillary, a democrata que agora pleiteia a
mesma cadeira na Casa Branca, cuidaria de arrematar a desregulação neoliberal
do mercado financeiro –com as consequências integralmente contabilizadas 10
anos depois, na quebra do Lehman Brothers em 2008, que desencadeou o atual colapso da ordem neoliberal.
A Carta brasileira sempre foi
vista pela elite e pelo dinheiro como a ovelha negra dessa supremacia
mercadista ora esgotada.
A pedra no meio do caminho
enfrenta agora um acerto de contas com os que se mostram determinados a
recuperar o tempo perdido para capacitar o Brasil a ingerir, de um só
golpe, todo o repertório de reformas
destinadas a suprimir direitos e acrescentar espoliação dos que vivem do
próprio trabalho.
O que impulsiona o sopro
conservador contra a ‘lamparina dos desgraçados’ nesse momento?
Um desses paradoxos da história:
o enfraquecimento –que o juiz de Curitiba pretende transformar em
aniquilamento-- do partido que assentiu
com reservas a ela em 1988, mas que pelas linhas tortas da luta política
tornar-se-ia seu principal guardião.
Entre outros motivos, o PT
rejeitou o resultado Constituinte –embora assinando a Carta-- por considera-lo,
como de fato era, paralisante do ponto de vista da reforma agrária, avesso à
pluralidade sindical, elitista no que tange à redistribuição fiscal da riqueza
e ao controle do sistema financeiro,
ademais de preservar esporões da ditadura no sistema político e no aparato de
segurança.
A anistia recíproca para vítimas
e algozes do regime militar, o mais evidente destes acintes.
Mas não só.
A correlação de forças expressa
na Assembleia de 1987, ademais, não permitiria ao país erigir uma Carta autoaplicativa em temas de relevância crucial para o futuro do desenvolvimento e da
democracia social almejada.
Caso exclamativo dessa lista é o
do artigo 220, parágrafo 5º, que veta o monopólio ou o oligopólio sobre os
meios de comunicação, nunca regulamentado --nem no ciclo interrompido pelo
golpe de 31 de agosto último.
Pouco mais de uma década de
governos petistas abriria, porém, uma fresta de avanços no cumprimento de
políticas sociais, na aplicação de direitos trabalhistas, no acesso ao crédito,
à escola, à moradia, no direito à segurança alimentar, na recomposição do poder
aquisitivo do salário mínimo, na soberania nacional, na defesa das riquezas
nacionais –tudo como previsto no espírito da Constituição Cidadã.
Os ‘nossos árabes’ atravessaram a
fronteira do mercado e bateram na porta da cidadania nesse estirão.
Até a eclosão do golpe, formavam 53% do mercado de massa e 46% da
renda nacional.
O conjunto de certa forma soldou
em um só destino a sorte deles, a da Carta e a do partido que dela divergiu,
mas se tornou o escudeiro e por isso o alvo dos seu algozes.
Um dos elos mais importantes
desse entrelaçamento foi o ganho real de quase 70% promovido nos últimos anos
no poder de compra do salário mínimo.
Sua extensão plena aos
aposentados do campo e aos beneficiados por idade, viuvez e invalidez é parte da chama cidadã que o
golpe deseja erradicar agora.
Estamos falando de um contingente
de 18 milhões de brasileiros. Multiplique-se isso por quatro dependentes: temos
aí um universo de 70 milhões de pessoas.
Não é preciso validar
integralmente o ciclo de governos iniciado em 2003 para admitir que essa
obediência ao espírito de 1988 sacudiu placas tectônicas do apartheid social
brasileiro.
Acrescente-se ao degelo, o
alcance de outras políticas pertinentes à promoção da segurança social, caso do
Bolsa Família, por exemplo.
O bote inflável passa a abarcar
um contingente de pelo menos 60 milhões ‘dos nossos árabes’, diria Chico, a
atravessar o limite do mercado interno.
No meio do caminho eclodiu uma
crise mundial.
Com nitidez vertiginosa,
avultaria o fato de que esse país em ponto de mutação não cabe mais no formato
anterior de um mercado com infraestrutura, sistema tributário, fiscal e
político planejados para 1/3 da população.
As tensões decorrentes desse
processo ocupam agora o centro da crise política aguçada pelo golpe e do debate
macroeconômico decorrente da crise que essa encruzilhada desencadeou.
Mais que isso: orientam a luta de
vida ou morte do conservadorismo contra a sigla que, involuntariamente,
tornou-se a guardiã do espírito de 1988 no Brasil do século XXI.
A longa convalescença da crise
mundial sistêmica não gerou forças de ruptura – ‘menos ainda no Brasil,
preservado dela até 2013, às custas de ações contracíclicas cujo esgotamento
esgotou também a coalizão e a governabilidade --favorecendo a virulência
conservadora em curso.
A macroeconomia desse braço de
ferro está assentada em contradições sabidas (integração mundial desintegradora
ou inserção soberana via BRICs, ancorada em resgate industrializante com o
pré-sal, associado a um controle de capitais que permita ao país ter câmbio
competitivo, sem cair na servidão rentista dos juros siderais para evitar fugas
recorrentes de dólares?)
Mas é sobretudo a ‘rigidez das despesas
obrigatórias’ – receitas vinculadas a
direitos sociais pela ‘lamparina dos
desgraçados’-- que constitui o alvo central do cerco conservador
nesse momento.
Expresso na PEC 241, o que se
pretende é restringir o alcance dessas obrigações, corrigindo-as exclusivamente
pela variação de preços do ano anterior durante duas décadas, o que significa
um monstruoso horizonte de arrocho em termos reais.
Porém é mais do que uma rasteira
datada o que está em jogo.
Trata-se, na realidade, de violar
o coração da Carta de 88 que encerrava uma concepção solidária de sociedade
para o futuro do país.
A expressão ‘des-emancipação
social’, cunhada pelo filósofo italiano Domenico Losurdo, expressa a
brutalidade e a abrangência do galope posto na rua pelo golpismo, com a
cumplicidade vergonhosa das esporas liberais (leia
http://cartamaior.com.br/?/Editorial/O-silencio-dos-liberais-raizes-da-vergonha-brasileira/36887)
A Constituinte de 1987 não
reconheceu nos mercados a autossuficiência capaz de destinar os frutos do
desenvolvimento à construção da cidadania plena, ainda indisponível à
ampla maioria da sociedade.
Destinou assim ao Estado e às
políticas públicas um papel indutor constitucional do desenvolvimento econômico
e social.
O mantra do equilíbrio intrínseco
aos livres mercados pretende agora
promover o desmanche dessa diretriz, lancetando da Carta o compromisso
do Estado de assegurar a universalização de direitos sociais básicos ao
conjunto da população.
A PEC 241 é a ponte para a
mutação futura desses direitos em serviços, vendidos pelo mercado.
É o que de forma abusada dizem os
próprios golpistas e seus vulgarizadores na mídia.
O padrão de Estado Social ‘com
direitos europeus’, segundo eles, é incompatível com a expansão capitalista no
Brasil.
‘Encarece o custo do investimento
privado’, afirmam.
‘Gastos obrigatórios rebaixam a poupança do setor público’,
fuzilam.
‘O conjunto move a engrenagem do
desequilíbrio fiscal e pressiona a taxa de juro, impedindo o desejado ciclo de
investimento sustentável’, arrematam.
Parece sensato, desde que se
exclua da equação a variável da justiça fiscal.
A verdade é que a equação
martelada hoje pelo conservadorismo está deliberadamente mal posta.
A escolha entre arrocho ou
desordem fiscal não é a única possível.
A repactuação do desenvolvimento
brasileiro, de fato, só é viável se for contemplada a alternativa inclusiva.
Aquela em que a insuficiência
fiscal é atenuada por um avanço de justiça tributária, com taxação da riqueza
financeira, alíquotas progressivas (no governo Jango, por exemplo, a alíquota
máxima era de 60%) , revogação das isenções para rentistas e de privilégios
para os acionistas.
Ou tudo isso condensado em uma
sigla única: CPMF.
A tensão política travestida em
impasse fiscal atingiu seu nível máximo, no impulso de impasses econômicos e
contradições políticas que já não cabiam nos limites da institucionalidade
disponível.
O golpe foi a resposta das elites
e da plutocracia, com o apoio nada desprezível da mídia, das togas, da escória
parlamentar e da República de Curitiba.
Inclui o desmonte da Carta de
1988 e o aniquilamento do PT. Ou vice -versa , já que os dois destinos se
entrelaçaram.
Do ponto de vista progressista, o
passo seguinte do processo iniciado em 1988 requer uma árdua repactuação de
forças que viabilize um retomada de crescimento associado a um salto qualitativo na inclusão dos ‘nossos árabes’.
Não é tarefa para um partido, mas
para uma gigantesca frente ampla dos interesses contrariados pela centralidade
argentária fortemente excludente do golpe.
Implementa-la não é uma tarefa
retórico. O verdadeiro desafio hoje é fazer de cada luta econômica, de cada
bandeira política, de cada palanque eleitoral, de cada trincheira cultural uma
oficina de construção da frente ampla.
Depois de navegarem da pobreza
para o mercado, as forças sociais banidas pelo golpe terão que assumir o leme do próprio destino
na vida nacional. Caso contrário, o risco de morrerem na praia será imenso.
(*) Esse texto atualiza
informações publicadas em CM em 05/10/2015
**Via cartamaior.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário