Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr
Subfinanciado desde a sua criação, o Sistema Único de Saúde já tinha a sua sustentabilidade ameaçada pelas transformações que o País passa: um acelerado envelhecimento da população, acompanhado do aumento da prevalência de doenças crônicas, a demandar tratamentos prolongados e dispendiosos. A PEC 241, que congela os gastos públicos por 20 anos, apenas agrava o problema, com a perspectiva de perda real de recursos, avalia o médico José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde do governo Lula.
Aprovada por uma comissão especial da Câmara, a proposta deve ir a votação no plenário nesta semana. Para diminuir resistências parlamentares à aprovação, o relator Darcísio Perondi (PMDB-RS) combinou com o governo uma mudança no projeto. O congelamento dos recursos de saúde e educação começaria não em 2017, como previa a proposta original do governo, mas em 2018. Além disso, o novo relatório estabelece que a base de cálculo do piso da saúde em 2017 será de 15% da receita líquida, e não de 13,7%, como previsto inicialmente.
Mesmo com o alívio no primeiro ano, é prevista uma perda acumulada de centenas de bilhões de reais ao longo dos 20 anos de vigência. "Essa decisão do Congresso é uma condenação de morte para milhares de brasileiros que terão a saúde impactada por essa medida irresponsável", diz Temporão, em entrevista a CartaCapital. "Estamos falando de fechamento de leitos hospitalares, de encerramento de serviços de saúde, de demissões de profissionais, de redução do acesso, de aumento da demora no atendimento."
Para o ex-ministro, o País renuncia ao seu futuro ao sacrificar a saúde e a educação no ajuste fiscal. "Se existe um problema macroeconômico a ser enfrentado, do ponto de vista dos gastos públicos, há outros caminhos. Mas este governo não parece disposto a enfrentar a questão da reforma tributária", afirma. "Temos uma estrutura tributária regressiva no Brasil, que penaliza os trabalhadores assalariados e a classe média, enquanto os ricos permanecem com os seus privilégios intocados".
O que representa a PEC 241 para a saúde pública?
Todos nós, especialistas em saúde pública que militam pela reforma sanitária há décadas, estamos estarrecidos com essa proposta. De um lado, ela denota a ignorância do governo sobre a dinâmica do setor de saúde. Bastaria fazer uma consulta ao portal Saúde Amanhã, da Fiocruz, que abriga uma série de estudos prospectivos dos impactos das transformações econômicas, políticas e sociais no campo da saúde para as próximas décadas, para que a PEC 241 fosse repensada.
Estamos vivendo um período de aceleradas transformações no Brasil do ponto de vista demográfico, epidemiológico, tecnológico e organizacional. Essas mudanças vão pressionar substancialmente o Sistema Único de Saúde, ameaçando, inclusive, a sua sustentabilidade econômica.
Um desses fatores de pressão é o envelhecimento da população brasileira, pois os idosos demandam maior atenção médica.
Sim, esse é um dos aspectos: a transição demográfica. O Brasil está passando por um processo de envelhecimento populacional muito rápido, praticamente na metade do tempo que a França levou para concluir essa mesma transição. Também há uma mudança no padrão das enfermidades.
As doenças infectocontagiosas estão perdendo espaço relativo, enquanto avançam as doenças crônicas, que representam um custo mais alto, não apenas no diagnóstico, mas em virtude do tratamento prolongado, que pode se estender por toda a vida. A Organização Mundial da Saúde projeta que, em 2030, as principais causas de mortalidade no mundo não serão mais as doenças cardiovasculares ou cerebrovasculares, e sim o câncer, que tem um custo de tratamento altíssimo.
Ou seja, os gastos com saúde só tendem a aumentar.
Na verdade, acho equivocado tratar saúde como gasto. Do conjunto de políticas sociais, ela tem uma dinâmica própria que pode, inclusive, fazer parte da solução macroeconômica para sair da crise. Ao contrário de outras áreas, nas quais a tecnologia costuma substituir o trabalho humano, na saúde ocorre justamente o contrário. Quanto mais tecnologia você incorpora, maior será a demanda de mão-de-obra qualificada.
Gostaria, porém, de destacar uma profunda injustiça do ponto de vista político: os que estão patrocinando a PEC 241, esse crime contra a saúde pública, estarão protegidos por seus planos e seguros-saúde, inclusive subsidiados pelos contribuintes. Os funcionários públicos dos três poderes têm planos financiados, em parte, pelos impostos pagos por todos os brasileiros. Os legisladores fazem parte dos 20% da população que dispõem de planos de saúde, mas essa decisão afetará profundamente os 80% que só podem contar com o sistema público.
O governo argumenta que não está retirando dinheiro da saúde.
Isso é retórica. Eles também dizem que, para 2017, colocaram recursos a mais. No entanto, a partir de 2018 a saúde estará submetida à mesma regra, de ter o orçamento reajustado pela inflação acumulada no ano anterior. Ora, isso é desconhecer completamente que a inflação e a dinâmica da saúde seguem uma trajetória absolutamente distinta. Todos sabem disso, há toneladas de estudos que comprovam esse descompasso. Uma medida como essa, que vigorará por 20 anos, levará a um profundo desfinanciamento da saúde, que a partir do terceiro ou quarto ano terá uma perda real de recursos, enquanto a demanda só aumenta.
Se existe um problema macroeconômico a ser enfrentado, do ponto de vista dos gastos públicos, há outros caminhos. Mas este governo não parece disposto a enfrentar a questão da reforma tributária. Por que não taxar melhor os 71 mil brasileiros mais ricos? Eles ganharam, em média, 4,1 milhões de reais no ano de 2013 e estão submetidos a uma carga tributária efetiva inferior a 7% (Confira um artigo a respeito, publicado pelo Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo, vinculado ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).
Temos uma estrutura tributária regressiva no Brasil, que penaliza os trabalhadores assalariados e a classe média, enquanto os ricos permanecem com os seus privilégios intocados. Deveriam ficar de fora do ajuste fiscal as áreas de saúde, educação, ciência e tecnologia, pois delas dependem o futuro do País, o nosso projeto de desenvolvimento.
Mas quem vai enfrentar os patos da Fiesp? Aquilo parecia ser um recado claro de que os ricos não estão dispostos a pagar mais impostos.
É verdade. Existe uma casta de brasileiros que detém uma fatia muito grande da renda nacional e pagam, proporcionalmente, muito pouco. O Brasil é um dos raros países do mundo que isentam empresários de pagar impostos sobre lucros e dividendos (dos 34 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, apenas México, Eslováquia e Estônia seguem essa tendência). Ou seja, a empresa paga o seu imposto, mas a pessoa física, quando declara essa renda, não é tributada.
Poderíamos fazer uma profunda discussão sobre essas disparidades, mas isso não entra na agenda política, até porque esse governo expressa justamente os interesses dessa casta de privilegiados.
A bem da verdade, nenhum governo enfrentou com seriedade a questão da regressividade da estrutura tributária no Brasil...
Sim. Infelizmente, isso permaneceu intocado mesmo nos governos petistas, de Lula e Dilma Rousseff. Até hoje estamos nessa encruzilhada, com a necessidade de uma reforma política, de uma reforma tributária, com a saúde e a educação como grandes desafios.
Qual é a estimativa de perda de recursos para a saúde pública?
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada fez uma projeção, antes dessa última mexida no texto da PEC 241, que demonstra um impacto brutal, de centenas de bilhões de reais (em um cenário de crescimento do PIB de 2% ao ano, a perda acumulada em 20 anos seria de 654 bilhões de reais, segundo uma nota técnica divulgada pelo Ipea no fim de setembro. De acordo com uma projeção feita por uma Consultoria da Câmara, somente no ano de 2025, a perda seria de 63 bilhões de reais – no acumulado de dez anos, chega a 331 bilhões).
Na verdade, não se trata de números. Estamos falando de mortes. Essa decisão do Congresso é uma condenação de morte para milhares de brasileiros que terão a saúde impactada por essa medida irresponsável. Estamos falando de fechamento de leitos hospitalares, de encerramento de serviços de saúde, de demissões de profissionais, de redução do acesso, de aumento da demora no atendimento.
E os dados da OMS revelam que investimento público em saúde no Brasil é inferior à média mundial, quando se analisa o gasto per capita.
É verdade, e a estrutura de gastos do setor é absolutamente distorcida. Apenas 48% das despesas totais com saúde no Brasil são públicas, o restante, 52%, são gastos privados, das famílias e das empresas. Os mais pobres também investem recursos próprios, toda vez que precisam comprar um medicamento ou ter acesso a algum serviço que não encontram na rede pública. No Brasil, o governo gasta pouco e o ônus do financiamento recai sobre as famílias.
A PEC 241 só agrava essa situação. Para ter um parâmetro de comparação, na Inglaterra, que também tem um sistema de saúde universal, 85% do gasto total é público. Essa é a grande diferença. Desde que nasceu, no final dos anos 1980, o SUS está subfinanciado. E, agora, corre o risco de passar por um processo de desfinanciamento, de retirada de recursos.
O cardiologista e ex-ministro da Saúde Adib Jatene, falecido em 2014, costumava fazer comparações com a situação anterior ao SUS, quando apenas os trabalhadores formais, com carteira assinada, tinham acesso aos hospitais mantidos pelo extinto Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps). Os demais dependiam da filantropia. O SUS incluiu milhões de brasileiros, mas jamais teve os recursos necessários para contemplar o aumento da demanda.
O que está se defendendo aqui? Que não retornemos à situação pré-SUS, quando havia três categorias de brasileiros: os ricos e muito ricos, que pagavam diretamente pela atenção à sua saúde, a massa de trabalhadores formalmente inserida no mercado de trabalho, que eram garantidos pelo Inamps (e agora beneficiam-se de planos de saúde das empresas), e os demais, que dependiam da caridade.
A PEC 241 ameaça uma cláusula pétrea da Constituição de 1988, que é o direito à saúde. E a responsabilidade intransferível do que vier a acontecer é deste governo e dos congressistas que aprovarem este disparate.
*Fonte: http://cut.org.br/
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