quinta-feira, 11 de abril de 2019

Como os povos em guerra



A criminalidade urbana se incorpora ao nosso cotidiano, à nossa normalidade

Por Janio de Freitas, na Folha de S.Paulo*

Indutores da eliminação humana sem julgamento e sem motivação real, por policiais e militares, Jair Bolsonaro e Wilson Witzel não tiveram coragem de dar sua opinião sobre o fuzilamento de um homem de bem, o músico Evaldo dos Santos Rosa.

O primeiro não foi capaz sequer de emitir uma palavra a respeito, mesmo que pedida. O governador fluminense fugiu pelo caminho das frases feitas: "Não me cabe fazer juízo de valor". Não só cabe: é obrigação dos dois, submetidos a exigências funcionais que se sobrepõem à covardia moral e à fuga política.

O crime foi cometido no estado do Rio, em circunstâncias que exigiam diversas providências do governante estadual e prontas satisfações aos seus, digamos, governados. O crime foi cometido por soldados do Exército, em atividade armada, e, portanto, sob responsabilidade federal da Presidência da República.

As omissões de Bolsonaro e Witzel foram noticiadas, no nível de atos reprováveis sem maior relevância. Até porque o crime está repleto de elementos deprimentes, em sua ocorrência e à sua volta.

À parte a incidência trágica e injusta sobre a família de Evaldo, um dos mais relevantes elementos está tão fora do episódio quanto nós outros. Está em nós. Sem palavras aveludadas: o que causou escândalo e indignação não foi o assassinato oficioso de um inocente, foi o número de tiros. Todas as reações, procedentes de todo o noticiário, centraram-se nos 80 tiros do ataque.

Claro, 80 tiros foram uma loucura bárbara. Fossem três, quatro, entrariam na sequência catalogada dos crimes atuais. Surpreso com o ataque a tiros contra pessoas pacíficas em um carro ninguém poderia ficar, no Rio e em vários estados. A motivação diferente não distingue a facilidade e a frequência com que bandidos e policiais cometem esses ataques. Mas 80 tiros criam uma diferenciação. Fazem escândalo, revoltam, deprimem.

O que tal peculiaridade e a reação decorrente nos dizem é o elemento deprimente de que nós outros, alheios ao crime, vamos nos tornando portadores: a criminalidade urbana se incorpora ao nosso cotidiano, à nossa normalidade. Em uma convivência natural com o nosso viver.

É preciso um componente ainda não frequentador das notícias, para dar a um episódio criminal o poder de nos escandalizar e indignar. E quase dispor-nos a cobranças.

A morte de Marielle, mas não a do seu motorista, já nos dissera isso. No Rio mesmo, e no Brasil afora, políticos e ativistas sociais estão morrendo na mira de assassinos, sem provocar mais do que pequena notícia, cada vez mais rara, e um instante de lástima. A incontrolável reação ao assassinato de Marielle se explica porque, além do reconhecimento à sua atividade de valente solidária, os tiros feriram o ativismo LGBT, o feminismo em geral e muito do progressismo político. Uma combinação que não permitiu o acolhimento do crime na normalidade que se forma fora e dentro de nós.

Com Evaldo dos Santos Rosa, naqueles dias morreram jovens sem culpa. Um bebê na barriga da mãe recebeu na cabeça uma "bala perdida" e luta para chegar ao nascimento. Crimes, muitos crimes. Tiveram, no entanto, pouco ou nenhum componente que impedisse sua incorporação pelas pessoas em que vamos nos transformando. Como os povos que vivem 10, 20 e mais anos sob guerra.

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