Por Marcio Sotelo Felippe, Advogado*
O autoproclamado iluminista ministro Luís Roberto Barroso declarou em entrevista ao Estado de S. Paulo
que “como regra, um tribunal deve ser capaz de interpretar e atender o
sentimento da sociedade”. A frase é tremenda. Nem se trata de algo
genérico que às vezes juízes ou ministros de tribunais superiores dizem,
como não ser indiferente à voz das ruas e coisas do tipo. O que o ministro diz vai muito além. Como regra.
Pensávamos que depois do Iluminismo (et pour cause) , como regra, um tribunal deveria aplicar normas objetivas e, acima de tudo, ser particularmente rigoroso com a Constituição.
A rigor, dessa perspectiva, não se trata exatamente de uma novidade que o STF não a tenha cumprindo. Desde o golpe do impeachment, a Constituição é um inútil pedaço de papel.
A história teria sido outra se Gilmar Mendes não tivesse interferido diretamente no processo político ao impedir que Lula
se tornasse ministro. Ao contemplar impávido o crime cometido pelo
então juiz Moro, que liberou para a Rede Globo os áudios da conversa
entre Dilma e Lula, o plenário do STF mostrou que consentia com o golpe,
recusando-se a deter as arbitrariedades do juiz de Curitiba.
Mas o que o ministro Barroso está dizendo agora vai, desastradamente,
bem além disso. Ele dá à submissão do Judiciário um verniz filosófico e
ideológico obscuro.
Procurar o Iluminismo do ministro é como procurar em um quarto escuro um gato preto que não está lá. Estabelecer como regra
o “sentimento da sociedade” é uma máxima que tem a ver com a
apropriação do Romantismo Filosófico pelo nazismo e absolutamente nada a
ver com o Iluminismo, que pretendia uma razão objetiva (que está, por
exemplo, na Constituição de 1988). O Romantismo não apreciava normas exceto as que derivassem de um sujeito que era livre tal qual um artista para criar.
O nazismo foi buscar no legado filosófico do Romantismo alemão o
fundamento de seu processo penal e de seu direito penal. O fio condutor
dessa apropriação remonta ao filósofo alemão Johann Gottlieb Fichte no
início do século 19. Fichte identificava o sujeito criador, próprio do
Romantismo, com o povo alemão. O espírito alemão era, segundo Fichte,
uma águia cujo poderoso corpo se impele ao alto para ascender perto do
sol, de onde gosta de observar. O povo alemão lançaria massas rochosas
de pensamentos sobre as quais eras vindouras construiriam suas moradas.
Fichte inspirou o movimento Volkisch, que cresceu no século 19 e deixou
forte marca no imaginário alemão. A palavra deriva de volk, povo, mas aqui com a conotação de etnia.
Os nazistas deram ao seu aparato repressivo o fundamento expresso, nominado, do volkisch.
Uma polícia biológica que não era neutra, mas ideologicamente
comprometida para, nas palavras do prócer nazista Hans Frank, a
“proteção e o avanço da comunidade do povo”. Toda agitação “oposta ao
povo” deveria ser sufocada.
Regras gerais e objetivas de tipo iluminista não limitavam a ação da
polícia e do Judiciário no Estado nazista. Quando o fundamento da
repressão do Estado passa a ser identificado com um sujeito – o povo –
que é senhor absoluto do dever ser, do mesmo modo que um artista é
senhor livre de sua criação, tudo é permitido. Seja porque parte da
massa pode irracionalmente ir às ruas e dizer-se “o povo” para apoiar
qualquer coisa, seja porque em nome de uma abstração do tipo “vontade do
povo” (ou “sentimento da sociedade”), o poder está legitimado para
qualquer barbárie. Aos nazistas bastava invocar a palavra mágica Volkisch para agir sem limites.
É evidente que o ministro Barroso está justificando forças
reacionárias que nos governam hoje. O que o faz cometer
irresponsabilidades ideológicas como a de invocar conceitos utilizados
pelo regime mais tenebroso da História. É isto que, ao fim e ao cabo,
significa dizer que os tribunais em regra devem atender o “sentimento da sociedade”. Não por contingência, não eventualmente, não de vez em quando. Em regra.
Cansamos de ver, ao longo da História, como o Judiciário atua como
correia de transmissão da engrenagem que é o núcleo real de poder. Entre
nós os exemplos são muitos.
O julgamento do habeas corpus impetrado no STF em favor de Olga Benário,
companheira de Luís Carlos Prestes, propiciou a extradição de uma judia
para a Alemanha nazista carregando no ventre uma criança brasileira. O
acórdão teve como fundamento a seguinte frase: “A paciente é estrangeira
e sua permanência no país compromete a segurança nacional, conforme se
depreende das informações prestadas pelo Exmo. Sr. Ministro da Justiça”.
Apenas isto.
O STF carimbou, tal qual uma singela repartição pública, a decisão do
ministro da Justiça. A ninguém ocorreu explicar como uma mulher grávida
encarcerada podia representar um risco à “segurança nacional”, e
ninguém achou conveniente lembrar que, no Estado nazista, judeus eram
considerados, já em 1935, depois das chamadas Leis de Nuremberg, “raça”
inferior e privados dos direitos básicos da pessoa humana. Os versados
em Direito reconhecerão os nomes envolvidos na torpeza, figuras
conhecidas do Direito brasileiro: Vicente Rao, ministro da Justiça, o
festejado teórico da hermenêutica Carlos Maximiliano e o célebre
civilista Eduardo Espínola, ministros do STF.
Podemos tomar outro acórdão menos conhecido, mas igualmente
paradigmático do Judiciário como peça de engrenagem do poder real em uma
sociedade. Em 1968, o STF decidiu quem era competente para julgar o
ex-presidente João Goulart, então acusado de crime comum. Aqui não
importa a decisão em si, mas o que revelava a tecnicalidade envolvida.
Toda discussão, intensamente travada na sessão, deu-se em torno de saber
se estava em vigor naquele momento, já promulgada a Carta de 1967,
dispositivo do AI-2 que havia subtraído do Judiciário a apreciação dos
atos praticados pelo “Comando Supremo da Revolução de 1964”. Era apenas a
questão da vigência formal, não ocorrendo a nenhum ministro fazer
qualquer observação sobre a norma em si, que conferia poder absoluto aos
que depuseram um governo constitucional legitimamente eleito.
Ou podemos lembrar novamente toda a atuação do STF no impeachment de Dilma Rousseff e a complacência com a arbitrariedade de Moro.
Recorde-se que em nenhum momento nenhum ministro levantou a voz, mesmo
sabendo que seu voto não mudaria coisa alguma, apenas para dar um verniz
em sua biografia e propiciar aos netos uma boa história para contar
sobre o avô. Bastava dizer, por exemplo, que o impeachment é um processo
jurídico-político, mas, para que o componente político seja considerado
é necessário o requisito jurídico, que não existia.
Esses precedentes devem ser lembrados por dois motivos. O primeiro é
que há ainda no campo progressista uma injustificável ilusão
juridicista. Lula entregou seu corpo
– talvez sua vida – à sanha do inimigo político (não mais adversário,
inimigo), apostando que o bom Direito o livraria. Juristas criticam
decisões segundo a ilusória lógica do Direito, como se o Judiciário
fosse de verdade autônomo, e com isso reforçam ilusões juridicistas
quando deveriam denunciar o Judiciário de fora para dentro, não no
interior de sua enganosa retórica e linguagem. Aí o Judiciário não
“erra”. É inútil, ou patético, dar lições de hermenêutica em artigos e
mais artigos aos ministros do STF. Confundem aparência com realidade. O
STF atua como sujeito político.
O segundo motivo é que Barroso vai neste momento, perigosamente, além
desses tristes precedentes. Em seu arrivismo joga gasolina na fogueira
do fascismo que ameaça a sociedade brasileira. Ele não só adianta que vai votar, sob o fundamento do “sentimento da sociedade” (Volkisch),
de acordo com os interesses políticos mais retrógrados que nos ameaçam,
como difunde no meio social, com a autoridade de ministro do STF,
conceitos obscurantistas que estavam presentes no fascismo.
Quando a extrema-direita investe contra o STF neste momento, o faz
também com noções que remetem historicamente ao fascismo, como o tal
“sentimento da sociedade”. A insanidade da extrema-direita também quer
que o STF julgue de acordo com a “vontade do povo”, conceito com a qual
pretende legitimar sua insanidade do mesmo modo como o nazismo buscava
legitimar-se com o Volkisch.
O ministro iluminista não mostra qualquer pejo de se apropriar de
conceitos sombrios derivados do Romantismo, indiferente ao que eles
possam ter de fascismo. Quem conheceu o constitucionalista Barroso sabe
que o ministro Barroso sabe o que está fazendo. O que torna seu
arrivismo intolerável.
*MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP - Fonte: Revista CULT
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