Por Tarso Genro (*)
A “revolução” neoliberal chegou de velas enfunadas ao
Brasil. As classes “altas” compraram a saída Bolsonaro à Presidência –
apoiadas massivamente pela mídia tradicional – não porque ele fosse um
neoliberal autêntico, mas por dois motivos fundamentais, depois que
perceberam que não teriam um candidato competitivo nas eleições do ano
passado. Primeiro motivo: tirar o PT do Governo e substituí-lo por
“qualquer um”, iludindo os incautos de todas as classes ao afirmarem que
isso possibilitaria “acabar com a corrupção”. Segundo motivo: Bolsonaro
seria bom para combater o comunismo, na forma do “marxismo cultural”,
que pervertia os jovens e as crianças nas escolas e nas universidades.
São dois motivos mentirosos e manipulatórios: 1. as classes
dominantes brasileiras – salvo exceções – nunca foram contra a corrupção
e só se bateram contra ela quando não estavam participando dos seus
esquemas abertos ou clandestinos; 2. o “comunismo” nunca esteve sequer
próximo de ser implantado no Brasil – muito menos depois da falência do
sistema soviético – inclusive porque o predominante nas escolas e nas
universidades é o velho legado iluminista, com vertentes tanto de direta
como de esquerda, depois da plena redemocratização do país em 88.
Os motivos verdadeiros que as classes dominante deram a Bolsonaro, na
verdade, foram basicamente dois: primeiro, seria difícil fazer a
reforma da Previdência que pretendem, desmantelando o Estado Social e
reduzindo drasticamente as funções públicas do Estado, tendo no Governo
um “político” tradicional, que necessitaria – e é lícito que assim seja –
prestar contas a eleitores e buscar os votos que legitimam o poder na
democracia; e segundo motivo: as classes dominantes brasileiras jamais
prezaram a democracia ou reverenciaram o voto popular, a menos que este
lhes fosse favorável, pois sempre foram autoritárias, imediatistas e
carentes de uma visão de nação.
A destruição das funções públicas do estado e a implementação da
“exceção”, no contexto democrático, são sempre maiores que um “crime”.
No nosso caso, por exemplo, o crime já fora banalizado pelo golpe do
“impeachment” e o que constitui hoje a nossa Historia (mais do que os
crimes) são os “erros”, como diria Talleyrand: um crime pode ser
absorvido ou penalizado pelo Sistema de Justiça no cotidiano político do
Estado, mas um “erro” não reconhecido produz e reproduz fatos que fogem
do controle de quem os cometeu. E podem se voltar contra os próprios
autores do erro, pois estes são sempre inclinados a pensar que a
História é uma linha reta, e que eles não cometem erros, e que as
“curvas” da História são meras desventuras causados pelo inimigo, não
percalços concretos de quem governa e vive a política.
O Presidente eleito quando manifestou – em campanha eleitoral – que
os seus adversários deveriam ser metralhados e quando afirmou que as
milícias deveriam ser implantadas, como fatores positivos da ordem,
cometeu delitos graves que foram absorvidos com naturalidade pelo
Sistema de Justiça, pois sequer foi acionado pelo Ministério Público;
Moro, quando violou e divulgou diálogos da Presidenta Dilma, cometeu
também um delito grave, sem qualquer consequência para o exercício pleno
da sua jurisdição de “exceção”: os “crimes” podem ser relevados quando a
chegada ao poder, por si só já é criminosa, mas os “erros” não perdoam!
Neste momento – seguindo a visão que vem de Talleyrand – Bolsonaro
comete mais do que crimes, comete “erros”, que podem destroçar o mínimo
de legitimidade que lhe foi conferida pelas urnas. É significativa a
manchete de um jornal como Zero Hora (13,14 abril), sempre tão
empenhado em defender reformas de desmantelamento do Estado e de
supressão das suas funções públicas. Diz ZH, na sua manchete principal:
“A receita paraguaia” (…) “o Paraguai se tornou símbolo de oportunidade
para investidores brasileiros…” E vai por aí…
Aquilo que há alguns anos atrás seria uma humilhação para qualquer
brasileiro, investidor ou não, ter o Paraguai como exemplo – como fora
apontada a Argentina de Macri depois da vitória do liberalismo rentista e
da decadência em curso- (ter o Paraguai como exemplo) passou ser uma
necessidade manipulatória para abordar a nossa crise. A Argentina entrou
em liquidação. Vamos aguardar os “especialistas” explicarem isso!
Qualquer regime em qualquer sistema político tem capacidade mínima
e alguma possibilidade de manipular as instituições, a partir do poder
político, mas a “manipulação” perverte a democracia e muda a sua
qualidade, quando nela passam a ser substituídas as ações dos sujeitos
políticos expostos na cena pública, por sujeitos ocultos. E o cotidiano
da política passa a ser induzido por estes sujeitos ocultos, como se
eles viessem da natureza: o “mercado”, os “investidores”, as “parcerias
internacionais”, a “bolsa”, os “administradores de Fundos”, cujas
“opiniões” em compota substituem a opinião proveniente de uma vida
consciente, “minimamente orientada”, gerada na cena pública.
Esta opinião livremente orientada é substituída – nesta hipótese – pela impressão vinda do instinto de sobrevivência dentro da barbárie. Só nestas condições é possível apontar o Paraguai como exemplo sem cair na galhofa.
A perda de 32,4 bilhões no valor da Petrobras por um gesto de bravata
populista, a incapacidade do Presidente de formar uma base parlamentar
para as reformas que acordou com as classes dominantes, o “perdão” aos
multi-assassinos do Holocausto, o seu enfrentamento com o oligopólio da
mídia (que ajudou sua eleição para que ele fizesse a reforma da
previdência), a sua indiferença em relação às mortes de pessoas do povo,
a ausência de explicação sobre as suas relações com Queiroz e com
milicianos, o perdão em curso da dívida multibilionária do agronegócio,
são “erros” que podem ser imperdoáveis.
Os crimes podem ser ocultados nos escaninhos do Sistema de Justiça de
qualquer país, quando isso interessa aos mais fortes, mas nem a
espetacular capacidade de manipulação do oligopólio midiático, que deu
sustentação consciente à eleição de Bolsonaro – naquele momento
inclusive inventando a mentira da luta entre os “dois extremos” – pode
ser capaz de fazer sumir a decadência de um Governo totalmente descolado
da realidade local e global. Bolsonaro ainda está aí, mas a impressão
que fica é que os seus tutores não conseguem mais lidar com a sua mente
confusa e a sua ignorância total a respeito do país que com ele
pretendem governar.
(*) Tarso Genro (foto) foi Governador do Estado do Rio
Grande do Sul, Prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro
da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
-Fonte: Sul21
Nenhum comentário:
Postar um comentário