segunda-feira, 15 de abril de 2019

Talleyrand e Bolsonaro: erros e mentiras





Por Tarso Genro (*)

A “revolução” neoliberal chegou de velas enfunadas ao Brasil. As classes “altas” compraram a saída Bolsonaro à Presidência – apoiadas massivamente pela mídia tradicional – não porque ele fosse um neoliberal autêntico, mas por dois motivos fundamentais, depois que perceberam que não teriam um candidato competitivo nas eleições do ano passado. Primeiro motivo: tirar o PT do Governo e substituí-lo por “qualquer um”, iludindo os incautos de todas as classes ao afirmarem que isso possibilitaria “acabar com a corrupção”. Segundo motivo: Bolsonaro seria bom para combater o comunismo, na forma do “marxismo cultural”, que pervertia os jovens e as crianças nas escolas e nas universidades.

São dois motivos mentirosos e manipulatórios: 1. as classes dominantes brasileiras – salvo exceções – nunca foram contra a corrupção e só se bateram contra ela quando não estavam  participando dos seus esquemas abertos ou clandestinos; 2. o “comunismo”  nunca esteve sequer próximo de ser implantado no Brasil – muito menos depois da falência do sistema soviético – inclusive porque o predominante nas escolas e nas universidades é o velho legado iluminista, com vertentes tanto de direta como de esquerda, depois da plena redemocratização do país em 88.

Os motivos verdadeiros que as classes dominante deram a Bolsonaro, na verdade, foram basicamente dois: primeiro, seria difícil fazer a reforma da Previdência que pretendem, desmantelando o Estado Social e reduzindo drasticamente as funções públicas do Estado, tendo no Governo um “político” tradicional, que necessitaria – e é lícito que assim seja – prestar contas a eleitores e buscar os votos que legitimam o poder na democracia; e segundo motivo: as classes dominantes brasileiras jamais prezaram a democracia ou reverenciaram o voto popular, a menos que este lhes fosse favorável, pois sempre foram autoritárias, imediatistas e carentes de uma visão de nação.

A destruição das funções públicas do estado e a implementação da “exceção”, no contexto democrático, são sempre maiores que um “crime”. No nosso caso, por exemplo, o crime já fora banalizado pelo golpe do “impeachment” e o que constitui hoje a nossa Historia (mais do que os crimes) são os “erros”, como diria Talleyrand: um crime pode ser absorvido ou penalizado pelo Sistema de Justiça no cotidiano político do Estado, mas um “erro” não reconhecido produz e reproduz fatos que fogem do controle de quem os cometeu. E podem se voltar contra os próprios autores do erro, pois estes são sempre inclinados a pensar que a História é uma linha reta, e que eles não cometem erros, e que as “curvas” da História são meras desventuras causados pelo inimigo, não percalços concretos de quem governa e vive a política.

O Presidente eleito quando manifestou – em campanha eleitoral – que os seus adversários deveriam ser metralhados e quando afirmou que as milícias deveriam ser implantadas, como fatores positivos da ordem, cometeu delitos graves que foram absorvidos com naturalidade pelo Sistema de Justiça, pois sequer foi acionado pelo Ministério Público; Moro, quando violou e divulgou diálogos da Presidenta Dilma, cometeu também um delito grave, sem qualquer consequência para o exercício pleno da sua jurisdição de “exceção”: os “crimes” podem ser relevados quando a chegada ao poder, por si só já é criminosa, mas os “erros” não perdoam!

Neste momento – seguindo a visão que vem de Talleyrand –  Bolsonaro comete mais do que crimes, comete “erros”, que podem destroçar o mínimo de legitimidade que lhe foi conferida pelas urnas. É significativa a manchete de um jornal como Zero Hora (13,14 abril), sempre tão empenhado em defender reformas de desmantelamento do Estado e de supressão das suas funções públicas. Diz ZH, na sua manchete principal: “A receita paraguaia” (…) “o Paraguai se tornou símbolo de oportunidade para investidores brasileiros…” E vai por aí…

Aquilo que há  alguns anos atrás seria uma humilhação para qualquer brasileiro, investidor ou não, ter o Paraguai como exemplo  – como fora apontada a Argentina de Macri depois da vitória do liberalismo rentista e da decadência em curso- (ter o Paraguai como exemplo) passou ser uma necessidade manipulatória para abordar a nossa crise. A Argentina entrou em liquidação. Vamos aguardar os “especialistas” explicarem isso!

Qualquer regime em qualquer sistema político tem capacidade mínima e alguma possibilidade de manipular as instituições, a partir do poder político, mas a “manipulação” perverte a democracia e muda a sua qualidade, quando nela passam a ser substituídas as ações dos sujeitos políticos expostos na cena pública, por sujeitos ocultos. E o cotidiano da política passa a ser induzido por estes sujeitos ocultos, como se eles viessem da natureza: o “mercado”, os “investidores”, as “parcerias internacionais”, a “bolsa”, os “administradores de Fundos”, cujas “opiniões” em compota substituem a opinião proveniente de uma vida consciente, “minimamente orientada”, gerada na cena pública.

Esta opinião livremente orientada é substituída – nesta hipótese – pela impressão vinda do instinto de sobrevivência dentro da barbárie. Só nestas condições é possível apontar o Paraguai como exemplo sem cair na galhofa.

A perda de 32,4 bilhões no valor da Petrobras por um gesto de bravata populista, a incapacidade do Presidente de formar uma base parlamentar para as reformas que acordou com as classes dominantes, o “perdão” aos multi-assassinos do Holocausto, o seu enfrentamento com o oligopólio da mídia (que ajudou sua eleição para que ele fizesse a reforma da previdência), a sua indiferença em relação às mortes de pessoas do povo, a ausência de explicação sobre as suas relações com Queiroz e com  milicianos, o perdão em curso da dívida multibilionária do agronegócio, são “erros” que podem ser imperdoáveis.

Os crimes podem ser ocultados nos escaninhos do Sistema de Justiça de qualquer país, quando isso interessa aos mais fortes, mas nem a espetacular capacidade de manipulação do oligopólio midiático, que deu sustentação consciente à eleição de Bolsonaro – naquele momento inclusive inventando a mentira da luta entre os “dois extremos” – pode ser capaz de fazer sumir a decadência de um Governo totalmente descolado da realidade local e global. Bolsonaro ainda está aí, mas a impressão que fica é que os seus tutores não conseguem mais lidar com a sua mente confusa e a  sua ignorância total a respeito do país que com ele pretendem governar.

(*) Tarso Genro (foto) foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

-Fonte: Sul21

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