Por Paulo Moreira Leite*
Num tempo em que o STF não demonstra a menor disposição para cumprir
várias de suas obrigações fundamentais, é bom tomar cuidado com a
discussão sobre o caráter constitucional da reforma da Previdência.
Numa tentativa grosseira de banalizar graves mudanças no
financiamento de nosso sistema público de aposentadorias e dar
legitimidade a um processo questionável e regressivo, os aliados de
Bolsonaro-Guedes tentam fugir de um debate crucial que irá ocorrer por
esses dias na Comissão de Constituição e Justiça.
Num exercício clássico de retórica política, que procura transformar
aberrações em eventos naturais, sugerem que se trata de um debate
ritual, uma espécie de forma vazia de conteúdo. Alega-se que a discussão
de fundo deve ser levada para a fase seguinte, quando o projeto de
mudanças for a votação, em dois turnos, pelo plenário das duas casas.
Um repórter da Globo News já afirmou que a Comissão de Constituição e
Justiça irá dizer "apenas" se o projeto é compatível com a Carta de
1988.
Não há "apenas" nesse debate. Vivemos num país onde a Constituição
afirma, no parágrafo 3o, que um dos objetivos da "República Federativa
do Brasil"é "construir uma sociedade livre, justa e solidária".
No mesmo artigo se diz que a República deve buscar "erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais ou
regionais".
O 3o também determina que a República deve "promover o bem de
todos". Denuncia expressamente vários preconceitos, não só de raça e
origem social, mas também de "idade", fator que obviamente tem relação
direta com o amparo à velhice.
Há mais. No artigo 6o, quando lista direitos sociais de todos os
brasileiros e brasileiras, a Constituição inclui a "previdência social"
ao lado de "educação, saúde, trabalho, moradia, proteção à maternidade e
infância".
Num mundo que naquela época já ouvia falar dos primeiros ensaios da
ruinosa capitalização individual que os Chicago boys de Paulo Guedes
implantaram no Chile durante a ditadura Pinochet, o adjetivo "social" ao
lado de "previdência" ajuda a lembrar que, numa Constituição nenhuma
palavra -- ou mesmo vírgula -- pode ser lida como puro enfeite.
Os artigos 3o e 6o dão forma e conteúdo a um embrião de estado de
bem-estar social, que os constituintes eleitos decidiram colocar de pé.
Num Brasil com um histórico de exclusão social e fragilidade
democrática, a Constituição de 1988 é uma bem construída peça de
resistência a serviço um povo que atravessou inúmeras derrotas e etapas
de sofrimento sem desistir de seus direitos.
Ao incluir inúmeras cláusulas e detalhes em seu texto, cuidado que
foi motivo de sucessivos ataques conservadores que apenas preparavam o
ataque final promovido pelo projeto de Bolsonaro-Guedes, a Carta de 1988
deixou claro que os direitos sociais não são clausulas optativas, nem
uma mercadoria a ser barganhada nos altos e baixos das conjunturas
econômicas. Tampouco podem ser questionados ao sabor da realidade
eleitoral de cada momento. Envolvem uma decisão política fundamental e
permanente, que desenhou o país no qual os brasileiros e brasileiras
vivem e decidiram viver após três décadas de ditadura militar e
desigualdade cada vez mais profunda.
Enquanto uma nova Assembleia Constituinte não for convocada para
rascunhar uma nova Carta, nossos parlamentares tem obrigação de rejeitar
todo esforço para amesquinhar e derrotar tamanha vitória da democracia
em nossa história.
*Jornalista - via Brasil247
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