Por Nubia Silveira, do Sul21*
Quem já chegou perto dos 50 anos acompanhou a grande
campanha feita no país para libertar a brasileira Flávia Schilling, presa no
Uruguai. Ela se tornou o rosto das mulheres que resistiam aos regimes
ditatoriais nos países do Cone Sul e conseguiu voltar ao Brasil em 1980, depois
de mais de sete anos de prisão.
A gaúcha Flávia, nascida em Santa Cruz do Sul, em 28 de
abril de 1953, cresceu numa família politizada. Como ela própria lembra, no
Memorial apresentado para o concurso de livre-docência na área de Conhecimento
de Sociologia da Educação, da USP: “Marcante foi o dia em que meu pai saiu de
casa para ficar no Palácio Piratini, com Brizola, na ‘luta pela legalidade’.
Foi a única vez em que vi meu pai armado: era a luta para que João Goulart
assumisse a presidência do Brasil.”
Seu pai era Paulo Schilling, jornalista e assessor do
ex-governador Leonel Brizola. Ele e todos os liderados por Brizola, em 1961,
saíram vitoriosos da resistência ao golpe para impedir que o vice-presidente
João Goulart assumisse a presidência da República, após a renúncia de Jânio
Quadros. Três anos depois, porém, veio a derrota. Poucos dias após o Comício da
Central do Brasil, os militares tomaram o poder. Como outros brasileiros, Paulo
Schilling precisou sair do país. Exilou-se no Uruguai.
“Tenho duas memórias fortes do Rio: no dia do comício do dia
13 de março de 1964, o Comício da Central do Brasil, com a população da zona
sul, em peso, acendendo velas nas esquinas e nas casas contra a ameaça
comunista. Que opressão, que constrangimento sentia, que sensação de
isolamento, de sermos minoria! Não era apenas a classe média moradora do
Leblon, mas também os moradores da favela próxima à Rua Carlos Góis (onde
morávamos) que acendiam as velas e oravam. Havia clima de golpe no ar.
“No dia do golpe, esta cena se repete: as janelas dos
apartamentos ficaram cheias de bandeiras do Brasil, de panos brancos, saudando
a “revolução” vitoriosa. Não compreendíamos totalmente estas questões, mas
víamos e ouvíamos: lições para toda a vida.” (Memorial apresentado para o
Concurso de Livre-Docência na Área de Conhecimento de Sociologia da Educação,
da USP)
Aos 11 anos, Flávia seguiu o pai, viajando logo depois, ao
lado da mãe e das três irmãs. Os primeiros tempos desta nova vida não foram
fáceis. Era preciso adaptar-se a uma nova cultura, dominar outro idioma,
conhecer melhor a cidade e fazer novos amigos. Nesse tempo de exílio,
compreendeu “a efemeridade do ‘poder’”.
“Convivíamos com muitos “ex”: ex-presidente, ex-governador,
ex-ministro, ex-reitor da UnB. Um mundo ‘ex’. Isso marca, indelevelmente, minha
relação com ‘o’ poder. Nunca mais me fascinei, temi, encarei com temor ou
reverência quem – de forma sempre tão precária e instável – ocupa lugares de
poder. Isso é muito bom.” (Memorial apresentado para o Concurso de
Livre-Docência na Área de Conhecimento de Sociologia da Educação, da USP)
Sete anos depois, em 1971, Flávia ingressa na Faculdade de
Medicina, de Montevidéu. Naquele ano, o presidente uruguaio, Juan Maria
Bordaberry, dissolve o Parlamento e institui uma ditadura civil-militar no
país. Surge então a Frente Ampla em oposição ao regime. E a brasileira se
divide entre duas paixões: a medicina e a militância. “Foi uma das decisões
mais difíceis de minha vida: quase não tinha mais liberdade para optar, quase
não foi uma decisão. Precisei passar para a clandestinidade em abril de 1972”,
lembra ela no Memorial. Flavia Schilling - Querida Família
Na noite do dia 24 de novembro de 1972, na Avenida 8 de
Octubre, em Montevidéu, ela e seu companheiro foram presos, depois de terem
sido seguidos por policiais do Exército à paisana, como contou Paulo Schilling,
no texto Flávia Schilling, por seu pai, no livro Querida Família. Foi baleada
no pescoço. Ela lembra:
“A polícia chegou, não sabia do que se tratava, enquadrou o
agressor, foi informada da situação, fui levada ao hospital militar. Lá fiquei
durante um mês, com a traqueotomia, uma lenta e difícil recuperação, quase sem
poder falar, durante um longo tempo.”
Ficou detida por cinco anos na prisão feminina em Punta
Rieles. Durante dois anos esteve na condição de refém, sendo levada de um
quartel a outro, na capital uruguaia. Em Querida Liberdade, outro livro que
reúne as cartas que enviou da prisão, um texto dos editores fala sobre as
condições em que viveu no cárcere: “regime de calabouço, incomunicação total,
humilhações e provocações de todo o tipo (inclusive em duas oportunidades
tremendos castigos corporais), transferências constantes e sem prévio aviso de
um quartel para outro”.
“O calabouço é pequeno, calculo que 1,5 m por 2,5 m. Tenho
uma cama, um armário pequeno que serve de mesa, e uma cadeira. Há espaço para
caminhar (cinco passos, ida e volta, cinco passos). As paredes estão pintadas
de azul, teto branco, uma janelinha com oito vidros pequenos, cobertos com
tinta branca, pelos quais brinco de adivinhar como está o dia, que cor terá o céu.
Por um dos vidros, vejo uma árvore. Acho que quando sair vou sentir terror aos
espaços abertos e às multidões (se continuo muito tempo aqui). Não temos
recreio, e só saímos do isolamento para ir ao banheiro. Tomamos banho uma vez
por semana, porque aqui não há água quente e é preciso levar-nos à enfermaria”
(carta enviada da prisão de Florida, quarta-feira, 3 de julho de 73, publicada
em Querida Liberdade)
As cartas, o tricô, o cigarro e as conversas com as
companheiras ajudaram a enfrentar os dias de solidão. A última carta pública
foi a que escreveu em São Paulo, no dia 21 de abril de 1980, em agradecimento
aos brasileiros. Hoje, prefere os e-mails.
“Esta carta é muito especial: hoje estou sentada em minha
casa; já passou tudo (passou?), deparo-me agora, reaprendendo a vida cotidiana,
o diálogo, a espontaneidade, todas as pequenas coisas (assim como aprender a
abrir uma porta e a tratar com naturalidade uma criança, tudo isso depois de 7
anos e meio), insegura em muitos aspectos, porém, lutando para que o medo à
liberdade nunca seja mais forte do que o amor a ela. O mais importante para
afugentar os fantasmas do medo são vocês.” (Carta ao povo brasileiro)
Libertada em 7 de abril de 1980, voou para São Paulo. O
Brasil vivia o governo do general João Baptista Figueiredo. Foi preciso – mais
uma vez – recomeçar, readaptar-se, definir a vida.
“Tempos realmente difíceis, com a ditadura e a repressão
ainda presentes no cotidiano. Tempos confusos, de transição (que nunca se
completava), de dúvidas e solidão. Os que chegavam, os exilados, com aquela
energia indescritível que ainda possuíam, tentavam se situar em um país
totalmente outro. Que país é este? Como entrar no país? Quem é quem? O que
vale, o que não vale mais? Foram tempos de luta, também. Muitos, como nós,
chegamos apenas com as malas, com pouca coisa ou coisa nenhuma. Cheguei,
literalmente, com a roupa do corpo. Foi o grande desafio de refazer a vida ou
fazer a vida.” (Memorial, USP)
Na capital paulista, Flávia fez sua vida. Teve o filho
Pedro, trocou a medicina pela sociologia, trabalhou no Cento de Referência e
Apoio à Vítima, assessorou a Comissão da Mulher do Parlamento Latino-americano,
participou do Observatório de Direitos Humanos do Mercosul e ingressou como
professora na Faculdade de Educação da USP, onde atua ainda hoje. Nesse tempo,
orientou 35 trabalhos de conclusão de curso, monografias de especialização,
iniciações científicas e teses de mestrado e doutorado. Escreveu 32 artigos, 21
capítulos de livros e nove livros, assinados ou organizados por ela, além de
outros textos publicados em anais de congressos e revistas.
Hoje, quando se comemora o Dia Internacional da Mulher, o
Sul21 publica esta entrevista com Flávia Schilling, uma das muitas resistentes
às ditaduras. Ela preferiu responder por e-mail.
“A palavra resistência sempre é ambígua. Não se espere
encontrar, nas instituições ou em nós aquele ‘diamante puro da resistência’.
Vamos nos lembrar que a resistência é algo que se dá no enfrentamento, no face
a face, nas relações do poder e é permeada de contradições e ambiguidades. A
resistência é uma crítica a uma lógica de determinado sistema, sempre comporta
uma crítica a certo sistema.” (Memória da Resistência ou a Resistência como
Construção da Memória, publicado no volume 3 da coleção A Ditadura de Segurança
Nacional no Rio Grande do Sul – 1964-1985, editado pela Assembleia Legislativa
do RS).
-CLIQUE AQUI para ler na íntegra*.
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**Nota do Blog 'O Boqueirão Online': Este Editor esteve presente no Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre, e tem viva na memória a emocionante cena da chegada de Flávia Schilling (vinda do Uruguai e em trânsito para São Paulo, em 07/04/1980), recepcionada por dezenas de companheir@s e militantes que lutaram por sua liberdade, assim como dos companheiros Flávio Koutzii (preso na Argentina) e de Flávio Tavares (Uruguai) -os 3 'F'). Depois de muita resistência, muita luta e de uma forte campanha internacional, os três finalmente conquistaram a liberdade. (Júlio Garcia)
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**Nota do Blog 'O Boqueirão Online': Este Editor esteve presente no Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre, e tem viva na memória a emocionante cena da chegada de Flávia Schilling (vinda do Uruguai e em trânsito para São Paulo, em 07/04/1980), recepcionada por dezenas de companheir@s e militantes que lutaram por sua liberdade, assim como dos companheiros Flávio Koutzii (preso na Argentina) e de Flávio Tavares (Uruguai) -os 3 'F'). Depois de muita resistência, muita luta e de uma forte campanha internacional, os três finalmente conquistaram a liberdade. (Júlio Garcia)
É interessante que a Flávia Schilling não é conhecida pela nova geração de brasileiros. A vida dela deveria ser ensinada nas escolas do Brasil.
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