Por Frei Betto*
Sabemos que o povo latino-americano é profundamente
religioso. Pergunte a um pequeno agricultor qual a sua visão de mundo e, com
certeza, receberá uma resposta de caráter religioso.
Sabemos todos? Quase todos. Exceto certa parcela da esquerda
latino-americana que, influenciada pelo positivismo marxista europeu, se
esqueceu de aplicar o método dialético ao fator religioso e, na contramão de
Marx e Engels (vide O Cristianismo Primitivo, de Engels), considerou tudo o que
cheira a água benta e incenso pura alienação a ser duramente combatida. E o
pior: incluíram nos estatutos de seus partidos a exigência de o novo militante
declarar-se formalmente ateu... Ou seja, primeiro, ateu; depois,
revolucionário.
Já a direita, mais inteligente em sua esperteza, sempre
soube explorar o fator religioso em seu proveito. Assim, para evitar que Jango
implementasse no Brasil reformas de base (estruturais), evocou a proteção
anticomunista de Nossa Senhora Aparecida e importou dos EUA o padre Peyton que
promoveu aqui, nas principais capitais, Marchas da Família com Deus pela
Liberdade.
Veio o golpe militar, a 1º de abril de 1964, e não era
mentira... Jango foi deposto e a sanha repressiva se disseminou pelo Brasil.
Como membro da direção nacional da Ação Católica, participei
no Rio, no Convento do Cenáculo, na rua Pereira da Silva, em Laranjeiras, da
reunião da CNBB na qual os bispos católicos definiram sua posição frente à
quartelada. Houve acalorada discussão entre progressistas e conservadores. De
um lado, Dom Helder Camara, bispo auxiliar do Rio, apoiado por Dom Carlos
Carmelo Mota, arcebispo de São Paulo e presidente da CNBB, criticaram os
militares por desrespeito à Constituição e à ordem democrática. De outro, Dom
Vicente Scherer, arcebispo de Porto Alegre, e Dom Geraldo Sigaud, arcebispo de
Diamantina (MG), exigiam Te Deum por ter a Virgem de Aparecida escutado os
clamores do povo e livrado o Brasil da ameaça comunista. Venceu esta segunda
posição. A CNBB deu seu apoio oficial aos militares golpistas.
Porém, não há mal que sempre dure. Àquela altura, um amplo
setor da Igreja Católica já estava comprometido com a resistência à ditadura.
Esta não soube perceber a diferença entre católicos progressistas e
conservadores. Cometeu o equívoco de considerar a Igreja uma instituição
monolítica, de poder centralizado, unívoco, que tacitamente acendia uma vela a
Deus e outra ao diabo...
O germe do progressismo católico no Brasil havia sido
semeado pela Ação Católica, influenciada pela Ação Católica francesa que, na
Segunda Guerra, participou da resistência ao nazismo em aliança com os
comunistas. Aqui, a JEC (Juventude Estudantil Católica) e a JUC (Juventude
Universitária Católica) se destacavam na luta por justiça no movimento
estudantil. Desses movimentos nasceu a Ação Popular, na qual os militantes
católicos de esquerda atuavam sem prestar contas aos bispos nem comprometer a
instituição eclesiástica.
Na primeira semana de junho de 1964, dois meses após o
golpe, o CENIMAR, serviço secreto da Marinha, promoveu no Rio o arrastão
destinado a prender militantes da Ação Popular. Para ele não havia diferença
entre Ação Católica e Ação Popular. O apartamento da direção nacional da Ação
Católica, da JUC e da JEC, vizinho do Convento do Cenáculo, foi invadido na
madruga de 5 para 6 de junho de 1964. Fomos todos presos.
Em outras regiões do país, leigos, religiosos(as) e padres
foram perseguidos, presos e/ou convocados a depor em IPMs (Inquérito Policial
Militar).
Logo a repressão percebeu que nem toda a Igreja apoiava o
golpe. Havia até mesmo bispos e cardeais críticos à ditadura e dispostos a
defender os direitos humanos. Muitos se engajaram em ações de resistência, seja
proferindo sermões tidos como “subversivos”, seja escondendo perseguidos
políticos.
A partir da prisão dos frades dominicanos aliados à Ação
Libertadora Nacional comandada por Carlos Marighella, em novembro de 1969 (vide
meu livro e filme de mesmo título, dirigido por Helvécio Ratton, Batismo de
Sangue), aprofundou-se o conflito entre Estado e Igreja Católica. A CNBB, já
então hegemonizada por bispos progressistas, emitiu documentos em defesa dos
direitos humanos e da democracia, e o papa Paulo VI respaldou os religiosos
encarcerados.
Em São Paulo, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns criou, a
partir de 1970, uma vasta articulação de resistência e crítica à ditadura, e
defesa dos direitos humanos: Comissão Justiça e Paz, equipe Clamor, jornal O
São Paulo, culminando na publicação do mais consistente documento anti-ditadura
produzido até hoje, o livro Brasil Nunca Mais, no qual os crimes da ditadura
são divulgados com base, não em notícias de jornais, e sim em documentos
oficiais elaborados pelas Forças Armadas.
*Frei Betto é escritor, autor de Diário de Fernando – nos
cárceres da ditadura militar brasileira (Rocco), entre outros livros. Website:
http://www.freibetto.org/ Twitter: @freibetto
Fonte: Correio da Cidadania
http://www.correiocidadania.com.br/
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