Sul21 - Ao que parece, no Brasil ainda há quem tenha dúvidas sobre o que seja trabalho escravo. Isto é o que se pode inferir da decisão tomada no dia 9 de maio pelas lideranças da Câmara Federal de adiamento da votação da PEC 438, ou PEC do Trabalho Escravo, para o próximo dia 22, por falta de consenso sobre o que seja escravidão. Para os opositores da medida e que conseguiram impedir a votação, não bastam as definições contidas no Código Penal Brasileiro e na Convenção sobre a Escravatura de 1926, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinada pelo Brasil.
A Proposta de Emenda Constitucional 438/2001 dá nova redação ao artigo 243 da Constituição Federal estabelecendo a pena de perda da propriedade da gleba de terra onde for constatada a exploração de trabalho escravo (expropriação de terras), revertendo a área ao assentamento dos colonos que já trabalhavam na respectiva gleba. De acordo com o texto proposto, “As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do país onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração do trabalho escravo serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”.
Trabalho escravo, segundo o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, é o ato de: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, trabalho escravo compreende “o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade”.
Tudo muito cristalino, não fossem as argumentações dos opositores da PEC 438, de acordo com os quais sua aprovação pode trazer “insegurança jurídica e abuso de poder” por parte dos agentes públicos encarregados de sua aplicação. Segundo, por exemplo, as declarações do deputado Luiz Carlos Heinze (PP-RS), integrante da Frente Parlamentar da Agropecuária, as definições do Código Penal e da OIT são “genéricas”. Na opinião do ilustre deputado gaúcho, “sem definir o que é jornada exaustiva de trabalho e trabalho degradante não é possível aprovar a matéria. Com que critério o fiscal (do Ministério do Trabalho) vai definir isso?”.
Nunca terá trabalhado o nobre deputado, a ponto de não saber identificar o que seja um período de trabalho excessivo e uma forma de trabalho humilhante, aviltante, infamante (que são os sinônimos empregados pelo dicionário Houaiss para definir o termo degradante)? Ou, ao contrário, terá o distinto deputado, que é originário do meio rural, trabalhado tanto tempo e/ou empregado tantos trabalhadores para lides excessivas e para tarefas aviltantes que já não consegue distinguir as formas decentes de trabalho de suas formas indignas?
Mais do que a celeuma sobre a definição de trabalho escravo, na verdade, o que está em jogo e, por este motivo, tem provocado discussões infindáveis e adiamentos sistemáticos da votação da PEC 438 é a questão da propriedade da terra. O que questionam nossos ruralistas é a possibilidade de o empregador perder a propriedade de suas terras, mesmo que nelas sejam exercidas formas de exploração do trabalho e do trabalhador que já foram abolidas em nosso país e que hoje são repudiadas em todo o mundo.
A escravidão foi extinta pelo capitalismo, exatamente porque era preciso criar mercado consumidor para os bens produzidos. Escravos, por não possuírem nenhuma forma de propriedade e por não receberem remuneração minimamente condizente com os trabalhos que exercem, não tem capacidade de consumo. Foram abolidos, portanto, para que o capitalismo pudesse se desenvolver e foram substituídos pelos trabalhadores assalariados que, não obstante recebam menos do que produzem, ganham o suficiente para comprar os bens necessários para a sua sobrevivência e a dos seus.
A expansão dos mercados e, consequentemente, dos produtores e dos consumidores é o mote que move o capitalismo. Por este motivo, além dos operários e dos salários de miséria que recebiam e recebem ainda hoje em muitos lugares e empresas, surgiram também as classes médias, com rendimentos mais elevados e com maior capacidade de consumo. O capitalismo, para sobreviver, necessita de capital, de produção crescente e, sobretudo, de consumidores com capacidade de compra em contínua expansão.
Não é este o entendimento dos ruralistas brasileiros, ao que tudo indica.
Vivemos ainda hoje no Brasil, em muitas regiões e de acordo com a percepção de muitos cidadãos, situações pré-capitalistas. Para muitos ruralistas e para todos os que pensam como eles, a propriedade, principalmente a propriedade rural, é intocável. Ela não precisa ser produtiva nem precisa, ao menos, gerar renda. Basta que ela seja possuída. No interior da propriedade rural, como se ainda vivêssemos nos séculos XVI, XVII ou XVIII, vale a lei do senhor. Ali ele pode tudo e a todos submete. Pode, inclusive, escravizar seus trabalhadores. Pode, até mesmo, contrapor-se ao capitalismo. Pode, tanto aviltar os trabalhadores quanto, também, dificultar o desenvolvimento do país.
Tanto esta visão é verdadeira, que os deputados ruralistas só admitem a votação da PEC 438 se forem definidas antes as formas e os procedimentos que serão adotados para se julgar os proprietários que forem pegos exercendo práticas escravistas. Não querem ser “pegos de surpresa”. Por este motivo, a PEC 438 está parada na Câmara desde 2004, quando foi aprovada em primeira votação. Por se tratar de emenda constitucional, para ser aprovada, a PEC 438 terá que ser submetida a uma segunda votação e precisará obter 3/5 dos votos.
Em 2004, a votação e aprovação da PEC 438 foi decorrência da pressão exercida por entidades da sociedade civil. O assassinato de três auditores fiscais do Ministério do Trabalho e de um motorista em Unaí (MG), em uma emboscada, quando se dirigiam para uma fazenda onde suspeitavam existir trabalho escravo, impulsionou o trâmite da matéria. Desde então, a PEC 438 está parada na Câmara. Para que ela seja colocada em pauta e votada, finalmente, será preciso que a sociedade civil se mobilize e exerça pressão sobre os deputados. Se isto não ocorrer, mais uma vez, no dia 22 de maio, a matéria sairá de pauta ou, o que pode ser ainda pior, poderá ser derrotada em plenário.
Mobilize-se. Ligue para os deputados de seu estado e de sua região. Envie emails, organize e participe de manifestações. Não fique parado. Vamos, todos juntos, pressionar pela aprovação da PEC 438. (Editorial do sítio Sul21 - 11/05/2012)
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