sexta-feira, 4 de abril de 2014

50 anos do golpe: um encontro de gerações inédito em Porto Alegre



Homenagem aos que resistiram à ditadura reuniu cerca de 2 mil pessoas, estudantes a maioria, para ouvir testemunhos de militantes que lutaram contra golpe.

Porto Alegre - por Marco Aurélio Weissheimer - Como é possível que, até hoje, no Brasil, nenhum torturador tenha sido preso? Nenhum! Como é possível que nenhum responsável por essas atrocidades tenha conhecido a justiça? As perguntas feitas por Flavio Koutzii expressaram a mistura de indignação e perplexidade que outros participantes do ato- homenagem “50 anos do Golpe de 1964, 50 anos de impunidade” expressaram na noite de segunda-feira (31), no Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que ficou superlotado para ouvir o depoimento de seis pessoas reconhecidas por suas trajetórias de luta contra a ditadura instalada no país após o golpe de 64 e pelas denúncias que fazem até hoje dos crimes cometidos neste período. A presença do público, majoritariamente jovem, surpreendeu os próprios organizadores do ato e, principalmente, os homenageados.

“A presença de vocês aqui hoje é um alento que não vivi em nenhum momento no pós-ditadura”, disse emocionada Suzana Lisboa, manifestando um sentimento que atravessava o ar do Salão de Atos da UFRGS. Foi um evento com uma altíssima carga emocional. E o principal combustível para a emoção foi a realidade. Algo de novo estava acontecendo ali, disseram vários dos participantes do encontro. A começar por Clara Charf, viúva de Carlos Marighella, que se mostrou absolutamente surpresa e encantada pelo que estava presenciando. “Estou admirada e encantada. Há muito tempo que eu não via uma manifestação assim. Se o Marighella estivesse vivo, isso aqui seria um grande presente para ele”, disse Clara, 88 anos, militante desde 1945, sempre com o movimento de mulheres como fez questão de registrar.

O ato-homenagem na UFRGS foi um encontro de gerações que, segundo testemunharam os mais antigos, ainda não havia acontecido na escala em que aconteceu. Um dos principais responsáveis por esse encontro inter-geracional foi o professor Enrique Serra Padrós (História/UFRGS), que trabalha com esse tema há anos e criou o Coletivo pela Educação, Memória e Justiça, que reúne professores, alunos e ativistas da área de direitos humanos. Padrós contou que, quando o Coletivo estava pensando o ato-homenagem, decidiu eleger como público-alvo preferencial estudantes das escolas de Porto Alegre. A partir daí se constituiu uma rede de amigos, companheiros, estudantes, ex-alunos e professores cujo trabalho se materializou segunda-feira à noite nas cerca de duas mil pessoas que lotaram o salão da universidade.

O encontro teve um significado especial para a universidade também, como afirmou a socióloga Lorena Holzmann, ex-aluna e professora da UFRGS. Ela lembrou o triste período das cassações e expurgos de professores que se seguiu ao golpe de 64. “Com este ato de hoje, a Universidade se redime, de certo modo, do que houve na ditadura. É um ato de redenção”, disse Lorena, também emocionada. Redenção, memória, verdade, justiça, encontro de gerações, vida: essas foram algumas das palavras centrais no ato-homenagem. Uma homenagem que se dirigiu aos participantes convidados e também aos que caíram na ditadura, sendo que cerca de 155 deles seguem desaparecidos até hoje. Um vídeo exibido no início do evento mostrou os seus rostos, em sua maioria, jovens idealistas como aqueles que estavam na plateia encontrando uma história que ainda não conheciam.

As novas gerações ouviram relatos crus e duros sobre o que foi a tortura na ditadura. Relatos como o de Goreti Lousada, filha de Antônio Losada, que sofreu um atropelamento e está na UTI do Hospital de Pronto Socorro. Goreti contou um pouco da história de luta de seu pai, que foi preso em 1973 no governo Médici e ficou quatro meses no DOPS em Porto Alegre sofrendo tortura. Ela leu um trecho de um texto escrito por Losada que descreve a tortura sofrida por uma mulher no DOPS. Essa mulher era a mãe de Goreti que, com a voz engasgada pela emoção, prosseguiu a leitura até o fim sendo muito aplaudida. Ela lembrou, com orgulho, que seu pai, após sair da prisão não seguiu o conselho dado pelos policiais de deixar aquilo tudo para trás. “Ele denunciou seus torturadores, nome por nome”.

João Carlos Bona Garcia homenageou, na pessoa de Enrique Padrós, todos os professores de História que estão trabalhando para resgatar a memória do período da ditadura. Também homenageou a todos os que tombaram pelo caminho, tanto no Brasil como no Exterior, lembrando os nomes de Frei Tito e Maria Auxiliadora. Bona Garcia também falou da tortura da qual foi vítima e deu o nome de seu torturador. “Quem me torturou foi Átila Rohrsetzer, que estava acompanhado de um médico, e nos torturava ouvindo música clássica e falando da mulher e dos filhos. Eles sentiam prazer em fazer isso”, contou. Bona disse ainda que a visão da ditadura segue presente na sociedade. “Em outros países, órgãos de repressão estão reconhecendo crimes que cometeram. Aqui no Brasil ainda não houve nada disso”.

Flavio Koutzii lutou contra ditaduras no Brasil e na Argentina, onde foi preso, e definiu assim a importância do ato do qual estava participando: “O centro de hoje é não esquecer o que aconteceu e entender o que aconteceu, em toda a sua complexidade”. Ele falou de dois resquícios do período ditatorial que seguem vivos hoje: “No Colégio Militar de Porto Alegre, os livros com os quais os alunos trabalham ainda trazem a versão das forças armadas sobre aquele período. Espero que um dia a Presidência da República ponha um fim nisso”. O segundo resquício é o fato de os torturadores não terem sido julgados até hoje. “Como é possível isso? Não se trata de nenhuma fobia anti-militar, mas sim de justiça e memória”. Sobre esse ponto, chamou a atenção ainda para o seguinte fato: “Nunca li uma notícia dizendo que alguém que foi torturado foi atrás de seu algoz depois de sair da prisão e o matou com um tiro na cabeça. Nenhum de nós fez isso, pois seria mais uma vitória deles”.

Na mesma direção, a uruguaia Lilián Celiberti denunciou a impunidade dos crimes cometidos na ditadura brasileira e defendeu a importância da memória para combatê-la. “A impunidade é a perseguição e a destruição da memória. Com todos vocês aqui hoje a memória se torna algo vivo, algo presente. Para derrotar a impunidade, cada um de nós aqui precisa sair daqui e compartilhar essa luta, compartilhar o que está ouvindo e vendo aqui. Neste diálogo inter-geracional podemos construir uma democracia real baseada na memória, na verdade e na justiça”.

Nei Lisboa manifestou algum otimismo com o que estava vendo nas atividades sobre os 50 anos do golpe. “É a primeira vez que vejo isso que está acontecendo agora. Nos atos relativos aos 30 ou 40 anos do golpe nunca conseguimos reunir tanta gente como está aparecendo aqui hoje. E se começou a falar mais claramente sobre o papel da sociedade civil, de empresários, da mídia e dos Estados Unidos no golpe”.

Nilce Azevedo Cardoso, que também foi torturada durante a ditadura, manifestou-se extasiada com o que estava vendo no Salão de Atos da UFRGS. Ela acentuou o caráter midiático-civil e militar do golpe e disse que “toda a sociedade brasileira foi torturada a cada tortura que um de nós sofremos”. Nilce traçou uma linha de conduta entre a impunidade da tortura e a sua prática hoje no Brasil: “Nós ficamos sabendo de torturas e mortes praticamente todos os dias. Nossos jovens estão sendo assassinados e uma das razões disso estar acontecendo é que, durante 21 anos, foi gestada uma sociedade do medo. Foram 21 anos de medo e não-pensar. Temos que desconstruir tudo isso. Temos que denunciar os Pedro Sellig e os Ustra da vida e perguntar onde estão nossos companheiros que foram assassinados, onde estão seus corpos?”.

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/

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