Por Jacques
Távora Alfonsin*
A
discussão de projetos de lei relacionados à venda de terras brasileiras, para
pessoas ou empresas estrangeiras, está retornando à Câmara dos deputados.
Agora, o alvo a ser atingido pela bancada ruralista, direta ou indiretamente,
encontra-se entre os artigos 188 e 190 da Constituição Federal:
Artigo
188. A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a
política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária.
§
1º A alienação ou a concessão, a qualquer título, de terras públicas com área
superior a dois mil e quinhentos hectares a pessoa física ou jurídica, ainda
que por interposta pessoa, dependerá de prévia aprovação do Congresso Nacional.
§
2º Excetuam-se do disposto no parágrafo anterior as alienações ou as concessões
de terras públicas para fins de reforma agrária.
Art.
189. Os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária
receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de
dez anos.
Parágrafo
único. O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à
mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil, nos termos e condições
previstos em lei.
Art.
190. A lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade
rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que
dependerão de autorização do Congresso Nacional.
Além
dessas limitações constitucionais incomodarem o capital interessado no mercado
de terras, seja o nacional seja o estrangeiro, cuja sede de apropriação e
concentração é sabidamente insaciável, o novo emprenho congressual de discussão
da matéria certamente quer eliminar a
previsão constitucional do destino dessas terras ficar prioritariamente
reservado para a reforma agrária.
Se
a esse destino for somado o direito-dever de a União executar a escandalosa
dívida de grandes latifundiários brasileiros, sonegadores de impostos, se
reintegrando na posse, também, de fazendas griladas, aí mesmo é que a
representação política das/os latifundiárias/os no Congresso vai se
desmoralizar por completo e isso ela precisa impedir a qualquer custo.
Além
de ficar sem qualquer sustentação a autopromoção que ela faz de ser a
locomotiva da economia brasileira - movida então a dinheiro público que ela não
paga - não faltaria chão para assentar quantas/os brasileiras/os pobres estão
penando, há anos, o desrespeito ao seu direito de acesso à terra, pela reforma
agrária prevista, igualmente, na Constituição. Essa nem precisaria enfrentar
toda a demoradíssima chicana processual, presente nas desapropriações de
imóveis rurais, para mensuração dos
graus de “produtividade” de cada
um.
As
manchetes do último número da revista “Caros amigos” arrola dados
impressionantes sobre o volume, em dinheiro, dessa dívida tributária não paga:
“Entre
os grandes devedores de impostos, cerca de quatro mil pessoas físicas e
jurídicas possuem dívida acima de R$50 milhões cada uma. Somadas, essas dívidas
totalizam R$906 bilhões. O valor representa cerca de 40% do PIB brasileiro.” “O
que chama a atenção é que muitos dos cem maiores devedores de impostos são
grandes proprietários de terras. É o caso das Usinas Outeiro (R$2,7 bi),
Cambahyba (2,6 bi), Victor Sence (2,4 bi), Companhia Açucareira Paraiso (R$2,7
bi), e da Companhia agrícola Baixa Grande (R$1,8 bi), todas do Rio de Janeiro.
O usineiro Antonio Evaldo Inojosa de Andrade (dono da Companhia Usina do Outeiro),
também é suspeito de grilar mais de 1,7 mil hectares de terra na Bahia. Somadas
as dívidas desses seis nomes, chegamos à cifra de R$12,2 bilhões.”
Entrevistado
pela “Caros Amigos”, Ariovaldo Umbelino de Oliveira “um dos mais respeitados
estudiosos do assunto”, denuncia como é grande a fraude presente na titulação
de terras, no Brasil: “O município de São Felix do Xingu, na Amazonia, possui
o segundo maior rebanho de gado do
Brasil, entretanto, não possui um único título de terra registrado. Ele afirma
ainda que 94% das fazendas no Pará e no Amazonas são compostas de terras
públicas, ou seja, são terras griladas, sem titulo. “Os grandes proprietários
de terras costumam dizer que, no Brasil, não há segurança fundiária. Não é que
não existe segurança, é que a maior parte de terras do País foi apropriada de
forma ilegal”, destaca o professor.”
A
reportagem mostra o mérito do trabalho conjunto de levantamento desses dados,
feito pelo Incra e pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional: “Segundo o procurador-chefe
do Incra, Junior divino Fidelis, se todas essas terras fossem destinadas a
reforma agrária, daria para assentar todas as famílias hoje e ainda sobraria.”
Como
a bancada ruralista deve saber disso, está se prevenindo como pode e uma das
saídas para o seu problema é franquear o quanto pode o território do país,
inclusive para empresas estrangeiras, conhecido o peso econômico político
dessas transnacionais, servindo de exemplo disso o que estão alcançando aqui em
venda de agrotóxicos e outras agressões ao meio-ambiente, que nem em seus
países de origem são toleradas. A publicidade áulica da capacidade de
“investimento” desses grupos se encarrega de esconder os seus maus efeitos
sociais e ambientais.
O
triste, em tudo isso, é ficar outra vez provado o quanto esse esbulho
territorial incentivado de fora, é apoiado por parte do nosso Poder
Legislativo. Discutir projetos de lei colonialistas, num país cujas terras
estão sendo mantidas e exploradas pela sonegação de impostos indispensáveis às
garantias dos direitos sociais do seu povo, é um crime de lesa-pátria,
suficiente para desvelar traição e roubo da soberania de quem ainda tem fé na
democracia e no Estado de Direito.
*Advogado, Procurador do Estado (aposentado); Mestre em Direito (Unisinos); assessor jurídico de movimentos populares; Coordenador da Acesso – Cidadania e Direitos Humanos
Fonte: Carta Maior - Créditos
da foto: EBC
cartamaior.com.br
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