Ainda há, para o bem do jornalismo pátrio, quem conte a coisa como ela é. José Roberto de Toledo faz isso, hoje, no Estadão, na mais perfeita e clara descrição do enredo que acabou no trágico episódio de ontem no Supremo Tribunal Federal.
Seu artigo, que reproduzo abaixo, é a obra-prima da clareza que não vemos, senão de forma bissexta, nos grandes jornais e na televisão, agora transformados e tribunais morais (e padrão inquisição), onde os repórteres e comentaristas dão lições de acordo com as conveniências políticas.
O vazio presidente golpista, cercado das nulidades que o nada pode atrair, armou uma arapuca e nala própria caiu. (Fernando Brito*)
Harmonia na crise
Jose Roberto de Toledo
Foi uma patetice espetacular mesmo para o circo brasiliense. Na semana passada, articuladores de Temer acharam que desgastar Renan Calheiros era uma boa ideia: ele atrairia a ira das ruas para si ao tentar votar, no atropelo, o chamado pacote anticorrupção. Melhor Renan do que o presidente, pensaram. Armaram a arapuca, e o senador ficou isolado no plenário. Perdeu por 44 a 14 sua tentativa de dar urgência à votação do projeto.
De fato, pareceu que só Renan queria anistiar a turma. Mas aquela quarta-fera era apenas o prólogo do espetáculo.
As faixas contra o Congresso e os gritos de “Fora Renan” no domingo encorajaram, no dia seguinte, o ministro Marco Aurélio Mello, do STF, a afastá-lo liminarmente – por considerar que um réu como o senador não pode substituir o presidente da República em caso de necessidade (ele é o segundo na linha sucessória).
Aí o governo percebeu o que fizera. Começou a tentar recolocar para dentro o que deixara escapar com sua obra: o pródigo gênio que fugira da garrafa – na falta de metáfora menos pior.
Temer e o que restou de seu time se deram conta de que o afastamento de Renan implicaria dar ao PT, na figura do vice-presidente do Senado, Jorge Viana, o controle do ritmo de votação das reformas constitucionais. Numa só tacada, a manobra anti-Renan ressuscitara a oposição e colocara em risco a única razão de ser do governo peemedebista. Bateu o desespero.
Vale lembrar que a confiança no governo é tão tênue que Temer e seus aliados tucanos precisam dizer dia sim e dia também que a equipe econômica de Henrique Meirelles está prestigiada. Tal qual cartolas de um clube de futebol prestes a cair para a segunda divisão, apelaram ao Tapetão.
Primeiro, trataram de prestigiar Renan. Não sem o apoio do governo, a Mesa Diretora do Senado referendou-o na presidência da Casa, enquanto suas secretárias driblavam o oficial de justiça do STF que deveria notificar o senador do afastamento. A manobra que começara dias antes como tentativa de entregar Renan aos leões se transformava em improvisada operação de resgate.
A protelação não bastava. A Turma do Pudim e demais comensais tiveram a ideia de convencer o plenário do STF a desfazer o que Marco Aurélio fizera. A presidente do STF, Cármen Lúcia, pautou o julgamento para o dia seguinte, e emissários convenceram magistrados a seguirem a tese que seria apresentada pelo decano Celso de Mello: Renan segue presidindo o Senado, mas não entra mais na linha sucessória de Temer. A “jabuticabum” suprema.
Ganharam o julgamento, graças aos votos dos ministros de sempre e de uma ou outra adesão de última hora: 6 a 3. Tudo com muitas mesóclises e citações latinas para dar a impressão de que as instituições estão funcionando em harmonia. De fato, estão harmonicamente em crise.
O resultado da operação “fica Renan” foi associar ainda mais o governo à imagem de réu do presidente do Senado e, de carona, acabar com a pose do Supremo. Nas redes sociais, nunca se viu tantos petistas e antipetistas convergirem contra o STF. Projetada como Plano C, para o caso de o governo Temer fracassar, Cármen Lúcia deixou ontem de ser a unanimidade em que tentavam transformá-la.
Cumpre-se a profecia de que nenhum Poder fica imune a uma crise de confiança deste tamanho. Ela contaminou o Executivo e expeliu Dilma Rousseff. Depois, o Legislativo de Renans e Eduardos Cunha. Agora, atingiu a última instância do Judiciário.
É nesse cenário que o governo tentará convencer quem tem menos de 50 anos a trabalhar até morrer, se conseguir emprego.
*Via Tijolaço
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