Por Pedro Estevam Serrano*
Um dos aspectos que já se põe como polêmicos e que já
era antevisto no juízo do “mensalão” é o do empate no julgamento, face à
aposentadoria compulsória do ministro Cezar Peluso.
A mídia tem noticiado uma divisão na opinião dos
ministros a respeito do tema. Como sabemos, a mídia é o veiculo mais usado
ultimamente para veiculação de opiniões e fundamentações de juízos de nossa
Corte Suprema, comportamento muito peculiar do Brasil, estranho a qualquer
Corte Superior do mundo civilizado, em geral mais discretas e conscientes dos
rigores de conduta imposta pela toga a seus usuários.
A divisão de opiniões se funda, de um lado, no fato de
que o regimento do Supremo prevê, em caso de empate, o voto qualificado (de
desempate) do presidente da Corte, salvo no caso de habeas-corpus em que há o
entendimento de que o princípio constitucional do favorecimento do réu pela
duvida em matéria penal.
Pelo que divulga a mídia, alegam alguns que o que se
aplica ao habeas-corpus é exceção que não se aplicaria a uma ação penal comum.
A nosso ver tal debate não faz o menor sentido. O
regimento do STF não pode ser tido como fonte normativa superior à
Constituição. O regimento deve ser interpretado à luz da Constituição e não a
Constituição à luz do regimento! Não pode haver questões “interna corporis” não
sujeitas aos valores da Constituição.
O que caracteriza um Estado constitucional de Direito
é exatamente que todo o “iter”, o percurso de formação da vontade estatal, deve
ser conformado pelos valores e princípios da Constituição. Se a dúvida ocorreu
no plenário da Corte, uma regra menor não pode fazer de conta que ela não houve
para condenar alguém. Não pode, portanto, haver a ficção para condenar no
direito.
Tais lições são primárias em direito e, obviamente, os
ministros melhor que ninguém as conhecem.
Se a Corte empata significa que, como órgão colegiado,
tem dúvida quanto à culpabilidade do réu. Atribuir voto de minerva a seu
presidente para condenar o réu em matéria penal é uma absurda ofensa ao
principio do favorecimento do réu pela duvida, um juízo que ofenderia os mais
comezinhos valores não apenas do Estado democrático de Direito e suas garantias
fundamentais, mas também da vida civilizada.
Como articulista, me causa muita estranheza ler
artigos na grande mídia comercial nos quais colegas colocam a questão como se
fosse algo em aberto, algo que coubesse um espaço razoável de dúvida face ao
sistema de garantias de nossa Constituição e seu sistema de valores.
Ora, se por um lado textos normativos têm espaços de
subjetividade interpretativa, que receberam diversos nomes nas diversas
correntes do pensamento jurídico, de outra é inegável que há um campo de
sentido objetivo em seus dizeres, aliás em qualquer dizer humano. Os sentidos
das coisas não são criados subjetivamente do nada. São produtos de pactos
intersubjetivos, se assim não fosse não haveria comunicação entre os homens.
Não vou aqui entrar em debates acadêmicos, mas sou
daqueles que acreditam que o caso concreto, como fonte de elucidação do sentido
da norma (que nunca tem inteireza de sentido em abstrato), não permite mais que
uma solução adequada à luz do plano de valores posto na Constituição, como
formulado por Dworkin.
Mas mesmo os que postulam pela maior amplitude
possível de discrição subjetiva do intérprete da norma no caso concreto hão de
concordar que, neste caso, nossa Constituição não deixa ao intérprete qualquer
margem de manobra de sentido.
Mesmo o mais aferrado dos Kelsenianos concordará que
nossa Constituição determina o principio da dúvida em favor do réu e que ele
implica em decisão de inocência em
empates de Cortes colegiadas, mesmo a Suprema, independentemente de qualquer
norma regimental que possa ser tida em contrário.
Um seguidor estrito de Kelsen, com base no famoso
capítulo VIII de sua Teoria Pura do Direito, alegará, contudo, que mesmo que a
decisão do STF seja contrária à Constituição neste caso, considerando os réus
culpados, será valida, pois ao juiz é dada a competência para, inclusive,
decidir contra a lei, tratando-se a decisão judicial de ato de “politica
jurídica”.
Este poder decisionista e arbitrário que Kelsen
concede aos juízes em sua formulação teórica é o ponto que mais divirjo de seu
pensamento, mas não vou aqui realizar este debate. Um texto jornalístico não é
o lugar mais adequado para tanto.
Mas digo: mesmo este Kelseniano acrítico e estrito
terá de reconhecer que a decisão do Supremo que conceda ao presidente da Corte
voto de qualidade em caso de empate do plenário em ação penal para fins de
condenar o réu contraria o disposto em nossa Constituição de forma intensa e
frontal. Se o sistema jurídico absorveria como válida esta decisão
inconstitucional da Corte é outro debate.
No plano político, creio ser inviável aceitar tamanha
ofensa à Constituição em uma decisão de nossa Corte Suprema. Como cidadão,
espero, sinceramente, que nosso Supremo Tribunal Federal não incorra neste
gravíssimo equívoco.
*Via sítio da revista Carta Capital http://www.cartacapital.com.br/
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