Por Verbena Córdula Almeida, do Observatório da Imprensa*
Sem dúvida Walcyr Carrasco brindou ao público que prestigiou
a telenovela Amor à Vida, na última sexta-feira, 31, com um final lindo e
bastante emocionante; diria que a cena final da trama, protagonizada por Félix
(Mateus Solano) e César (Antonio Fagundes) lembrou-me alguns bons filmes de
Hollywood. O diretor está de parabéns. Mas, apesar disso, mais uma vez a Rede
Globo de Televisão demonstra, na teledramaturgia – que um dos seus produtos de
maior audiência – está longe de tratar, com a profundidade que caberia em um
produto como a telenovela, certas questões da sociedade brasileira. Uma delas
foi o autismo e a outra a homossexualidade. A personagem Linda e o beijo entre
Félix e Niko foram provas de que a emissora é elitista e conservadora.
Está claro que telenovela é um produto de ficção e de
entretenimento. Mas é fato, também, que é um conjunto de discursos e,
considerando o grau de penetração que esse tipo de produto tem na sociedade
brasileira, carrega consigo uma grande probabilidade de gerar opiniões. Cabe
aqui tomar emprestada uma afirmação de Bucci (1998, p. 21) segundo a qual “a
televisão é muito mais do que um aglomerado de produtos descartáveis destinados
ao entretenimento da massa. No Brasil, ela consiste num sistema complexo que
fornece o código pelo qual os brasileiros se reconhecem brasileiros.”. Por
isso, torna-se importante salientar que uma telenovela que se propõe a discutir
temas importantes como a homossexualidade e o autismo, por exemplo, como o fez
Amor à Vida, deveria fazê-lo de maneira a, pelo menos, sair de modelos que
buscam “suavizar” aos olhos de certos segmentos sociais, algumas realidades.
No tocante ao autismo, foi muito belo o tratamento dado à
personagem Linda (Bruna Linzmeyer), mostrando como um ser com essas
características pode ir longe. No entanto, Linda de Amor à Vida era uma autista
de classe média, cujos pais reuniam as condições para cuidá-la, inclusive com o
privilégio de um deles dedicar-se exclusivamente à filha; realidade que não faz
parte de famílias não-fictícias no Brasil que convivem com a realidade do
autismo.
Beijo não retrata a paixão
Muitas famílias de autistas sequer possuem um espaço
adequado em casa para um(a) filho(a) com essa característica especial; têm
negada a matrícula em escola, ou, quando conseguem a matrícula não têm a devida
atenção, por falta de preparo dos profissionais; ou têm dificuldade de levar
o(a) filho(a) à escola por falta de transporte; ou ainda vivem em localidades
desprovidas de profissionais terapeutas especializados para acompanhá-los,
entre outras carências.
O autismo tal como o retratado em Amor à Vida, apesar de
lindo e romântico, não refletiu a dura realidade vivida por muitas famílias
brasileiras, e a novela poderia, mesmo centrada na história de Linda, retratar
um pouco dessas mazelas, sem “suavizar” tanto; afinal, seria importante
“mostrar” ao telespectador que nem todo autista é de classe média, possui pais
vivendo juntos e com situação financeira confortável, ou que terá o futuro
brilhante como o da personagem Linda. Mas a Globo continua ignorando os
não-abastados, como quis fazer com as manifestações de junho/julho de 2013.
No tocante à homossexualidade, Amor à Vida teve alguns
acertos, um dos quais tive a oportunidade de elogiar no artigo intitulado “O
potencial dialógico e educativo da televisão”, edição 758 (publicada no dia 6
de agosto de 2013). No entanto, aos meus olhos a emissora deixou a desejar – e
deixou claro o lado conservador que ainda preserva em relação ao tema. Ao
contrário das cenas de amor entre casais heterossexuais – a exemplo de Paloma e
Bruno (Paolla Oliveira e Malvino Salvador), ou Patrícia e Michel (Maria
Casadevall e Caio Castro) –, extremamente ardentes, jamais o fez entre os
casais homossexuais – Niko e Eron (Tiago Fragoso e Marcello Antony) ou Félix e
Niko (Mateus Solano e Tiago Fragoso) – demonstrando preconceito em relação à
homossexualidade. Por que não mostrar cenas equivalentes? Até o tão comentado
“beijo gay” deixou a desejar, não retratando a paixão que Niko e Félix sentiam
um pelo outro.
Um instrumento de opressão simbólica
A novela não “suavizou”, no entanto, a violenta cena na qual
Aline (Vanessa Giácomo) esfaqueou Ninho (Juliano Cazarré), friamente, por
várias vezes e o abandonou para morrer. A cena mórbida, violenta e fria fora
retratada sem pudores, mas o beijo e o amor entre um casal homossexual, para a
Rede Globo, parecem ainda necessitar de certos “cuidados”, apesar de o também
programa “global”, Fantástico, haver repercutido o referido beijo como se
tratasse de uma verdadeira “revolução” da televisão brasileira.
Ficou claro que a Rede Globo ainda não assumiu trabalhar a
homossexualidade de forma normal, ou seja, prevalece o padrão “heteronormativo”
defendido pelos setores conservadores, o qual, com reforços como este
demonstrado pela referida novela, demora ainda mais para ser socialmente
desconstruído. A emissora ainda não assumiu retratar certas realidades do
cotidiano nacional. Quando sinalize uma pretensão, como o fez em várias
ocasiões e nesses dois exemplos citados, sempre deixa o seu “rastro” de
conservadorismo, de elitismo.
Diante disso resta-nos, como sugere o sociólogo francês
Pierre Bourdieu (1997, p. 13), lutar “para que o que poderia ter se tornado um
extraordinário instrumento de democracia direta não se converta em instrumento
de opressão simbólica”.
Referências
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Zahar,
1997.
BUCCI, Eugenio. Brasil em tempo de TV. São Paulo: Boitempo,
1997.
*Via Sul21
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