O jogo feio dos
bonzinhos
por Paulo Moreira Leite*
Quando faltam 48 horas
para o reinício do julgamento do mensalão, interrompido de forma abrupta por
Joaquim Barbosa na quinta-feira da semana passada, é bom ir à substância das
coisas.
Ao interromper o
julgamento, Joaquim impediu o ministro Ricardo Lewandovski de expor seu ponto
de vista sobre um recurso do deputado Bispo Rodrigues.
Condenado pela nova lei
anticorrupção, Rodrigues quer que sua pena seja definida pela legislação em
vigor no momento em que os fatos ocorreram, e não pela legislação posterior,
que agravou as condenações. É um recurso simples, com fundamento em regras
tradicionais do Direito, e tem muito fundamento lógico.
O mesmo princípio
aplica-se a qualquer cidadão obrigado a prestar contas a Justiça, mesmo que
envolva delitos mais leves, como o do estudante apanhado com um cigarro de
maconha na mochila.
É claro que o tribunal
precisa realizar este debate. A fase atual, de recursos declaratórios,
destina-se exatamente a sanar dúvidas e contradições dos acórdãos.
E se alguém não enxerga
uma contradição tão elementar como condenar uma pessoa com base numa lei que
não estava em vigor no dia em que o crime foi cometido deveria voltar ao
primeiro ano de Direito, certo?
O problema é que todos
sabem do que estamos falando. A truculência de Joaquim, expressa uma questão de
natureza muito mais grave, que vai além das boas maneiras e da cortesia. Coloca
em risco o direito dos condenados a apresentar recursos, o que, afinal, é um
direito assegurado pela legislação. É disso que estamos falando.
Nenhum ministro, nem o
presidente do STF, pode tratar os direitos dos réus como aquilo que ele
gostaria que fossem.
A Constituição não é
aquilo que o Supremo diz que ela é mas aquilo que o povo, através de seus
representantes eleitos, diz que é.
Tem gente que diz que
Joaquim e Lewandovski tiveram um “atrito” na quinta-feira. Que vergonha. O
presidente do STF tomou a palavra de um ministro que tinha todo direito de
exercê-la. Lewandovski reagiu com a dignidade que a situação impunha. Que
“atrito” é este?
Outro truque é falar
que há uma “divergência” de opinião entre os ministros. É inacreditável. Os
fatos ocorreram numa data e a nova lei estava em vigor em outra. Cadê a
“divergência”?
Procurando livrar a
cara de Joaquim, o último recurso de nossos conservadores é sugerir que ele
peça desculpas a Lewandovski pelas palavras grosseiras que empregou na
quinta-feira. Que bonito.
Compreende-se a origem
de uma sugestão tão cavalheiresca. Gratificados pelos serviços políticos
prestados por Joaquim Barbosa no julgamento, nossos conservadores querem lhe
dar uma saída honrosa, inofensiva e fútil.
Topam fingir que
assistimos a um incidente semelhante a um esbarrão numa escada no metrô, por
exemplo. Ou à milésima reação “intempestiva”, “descontrolada”, do presidente do
Supremo. Desculpas, desculpas. É, a palavra é mesmo apropriada.
Nossos cavalheiros
dizem que estão em desacordo com a forma, um pouco grosseira demais, digamos
assim. Querem esconder que apoiam o conteúdo. O problema, porém, é de conteúdo.
Recusar o debate sobre
embargos declaratórios implica em atropelar direitos assegurados em lei. Não é
um problema de boas maneiras. Nem de psicologia. Nem de saber se Joaquim força
uma crise diante das câmaras de TV para renunciar ao cargo e lançar-se
candidato a presidência. Vai ser escandaloso se isso acontecer, é claro. Mas é
uma especulação.
É um problema de
natureza política.
O erro consiste em
bloquear um debate sobre erros e contradições dos acórdãos. Joaquim intimida
dissidentes e discordantes. Interrompe o julgamento quando lhe convém.
E isso não é aceitável.
Este é o direito
ameaçado por suas atitudes. Não é um problema pessoal entre dois ministros.
Depois de cobrir o
julgamento como um espetáculo, sem o mais leve espírito crítico tão presente em
seus editoriais, nossos meios de comunicação estão unidos a Joaquim Barbosa no
esforço para acabar o show de qualquer maneira.
Com graus variados de
sutileza, a postura de muitos observadores é de chantagem em torno de um novo
fantasma, o 7 de setembro.
Perguntam: como “a
rua,” “o monstro”, vai reagir, se até lá ninguém tiver sido preso?
Em vez de assumir seu
papel social com dignidade e explicar por que nem sempre a Justiça anda nos
prazos de uma novela de TV ou no CSI, pretende-se fazer o contrário: subordinar
o mundo e os direitos das pessoas às regras da sociedade de espetáculo.
Estas regras, como se
sabe, consistem em mostrar que tudo muda para que nada mude.
Depois de seguir o
mandamento de Rudolf Hearst, inescrupuloso magnata da imprensa norte-americana,
para quem ninguém perderia dinheiro investindo na “pouca inteligência do
leitor,” usa-se a “pouca inteligência do leitor” para justificar uma política
sem escrúpulos.
E aí chegamos ao
verdadeiro problema.
O espetáculo não foi
tão bom como nossos críticos querem nos fazer acreditar.
A contradição absurda
entre datas, que chegou a consumir longos debates durante o julgamento, o que
torna o tema ainda mais espantoso, é o primeiro ponto que precisa ser colocado
em pauta. E é muito maior do que você pode imaginar.
Os grandes troféus do
julgamento, José Dirceu, José Genoíno e Delubio Soares também foram
prejudicados por essa falha “técnica”, digamos assim. Olhe, então, o tamanho do
estrago que esse debate pode produzir – só no capitulo “datas.”
Será por isso que
querem acabar logo com o show?
Sem dúvida. Há muito
mais a ser debatido. E aí não vamos imbecilizar o diálogo. É claro que os
condenados querem expor seu ponto de vista e provar suas teses, aproveitando
cada brecha, cada pequeno respiro, que a legislação oferece. Isso não quer
dizer que eles não tenham argumentos reais que devam ser considerados.
Essa atitude não
transforma seu esforço em malandragem – embora a cobertura tendenciosa,
facciosa, dos meios de comunicação, como definiu mestre Janio de Freitas,
destine-se a sugerir que toda visão discordante contenha elementos de
desonestidade.
Não é Fla x Flu. É Flu
x Flu. Ou Fla x Fla.
Os condenados precisam
de tempo, que não tiveram na primeira fase do julgamento.
A leitura de muitas
alegações sugere que não tivemos um julgamento de verdade em 2012. Não se
considerou os argumentos da outra parte, nem se deu a atenção devida a
contradições entre as acusações e as provas. Estamos falando do direito de
pessoas, não de personagens de um programa de TV. Estamos falando da liberdade
individual – um bem que não pode ser tratado com pressa nem com desprezo, vamos
combinar.
Para quem está impaciente,
fazendo a chantagem da rua, do monstro, não custa lembrar que não se teve a
mesma impaciência com o propinoduto tucano, que começou a ser denunciado em
1998 e teve seu primeiro indiciamento há apenas quinze dias…Isso mesmo: há
quinze dias.
Mesmo assim, já tem
gente reclamando contra o uso da teoria do domínio do fato contra o PSDB.
Curioso, não?