Sul 21 - por Milton Ribeiro - Li Madame Bovary apenas uma vez e acho
que não preciso de outra para colocar o livro nesta lista de indicações. Se o
ser humano é uma coisa eternamente insatisfeita, aqui temos o microcosmo da
infelicidade feminina e da desilusão romântica. Não vou contar em detalhes a
história do livro, mas esta foi tão imitada e recontada que não guarda mais
nenhuma novidade. É o romance que fundou o realismo em 1857 e, assim como a
cabeça do Quixote estava cheia de romances de cavalaria, a de Emma Bovary
estava lotada de romances sentimentais. Emma casa-se com o médico Charles
Bovary, insípido e apaixonado por ela. O tédio insere-se de tal forma na
relação que ela passa a detestar o marido. A progressão do tédio e sua
transformação em desinteresse e depois ódio são contadas por um autor
absolutamente impecável e no perfeito domínio de seus meios. Nada parece estar
fora do lugar, nenhuma palavra. Dividido em três partes, como um concerto,
demonstra como Emma permanece insatisfeita mesmo após o nascimento da filha e
de seus apenas prometedores adultérios.
Na época em que foi publicado, Madame
Bovary causou escândalo e foi julgado por obscenidade. Quando perguntaram a
Flaubert quem era a protagonista que tinha sido descrita com tamanha perfeição
e riqueza de detalhes, o autor respondeu ao tribunal com a célebre frase que
diz tudo: “Madame Bovary c`est moi!”.
E era. Flaubert passou mais de uma
década observando, apurando, polindo, reescrevendo e inaugurando o realismo na
literatura. Flaubert foi absolvido no ridículo processo, mas não foi perdoado
pelos puritanos, que não conseguiam admitir o tratamento cru dado ao tema do
adultério e pelas críticas implícitas ao clero e à burguesia, ambos desprezados
por Flaubert. Mas esqueçam o fundador do realismo, o processo e tudo o que
cerca Bovary. O livro é antes de tudo um texto admirável, construído com
arrebatador virtuosismo; um texto trabalhadíssimo onde não se notam sinais do
suor do autor. Tudo flui, tudo ganha seu devido ritmo e todo detalhe jogado ali
é significante e contribui para a narrativa. Talvez Madame Bovary seja a maior
das aulas práticas de narração.
James Wood escreveu em 'Como funciona a
ficção' que “Tudo começa e tudo termina com Flaubert”. Discordo. A literatura
moderna recebe notável impulso com Flaubert, mas já começara com Stendhal. E
não termina no autor de Bovary, como diz a frase de efeito de Wood. Porém, para
usar uma palavra que está na moda, Madame Bovary é um romance verdadeiramente
incontornável.
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